sábado, 7 de agosto de 2010

Capitães da Areia - Jorge Amado


Por que Jorge é amado?
Jorge ama e nos leva a amar suas personagens.
Chico Buarque

Suas esplêndidas histórias retratam de maneira comovente o nosso país e o nosso povo, com uma universalidade capaz de encantar leitores de todo o mundo.
Rubem Fonseca

Em Jorge, a arte de fazer-se amar era espontânea, nunca premeditada.
José Saramago

Jorge é um dos inventores do povo brasileiro.
Caetano Veloso


I – AUTOR:
Filho de João Amado de Faria e de D. Eulália Leal, Jorge Amado de Faria nasceu no dia 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, em Ferradas, distrito de Itabuna - Bahia. Com apenas dez meses, vê seu pai ser ferido numa tocaia dentro de sua própria fazenda. No ano seguinte uma epidemia de varíola obriga a família a deixar a fazenda e se estabelecer em Ilhéus. Em 1917 a família muda-se para a Fazenda Taranga, em Itajuípe, onde seu pai volta à lida na lavoura de cacau.
Em 1918, já alfabetizado por sua mãe, Jorge retorna a Ilhéus e passa a frequentar a escola de D. Guilhermina. No ano de 1922 cria um jornalzinho, "A Luneta", que é distribuído para vizinhos e parentes. Nessa época vai estudar em Salvador, em regime de internato, no Colégio Antonio Vieira, de padres jesuítas. Dois anos depois, seu pai vai levá-lo até o colégio após as férias. Despedem-se e Jorge, ao invés de entrar nele, foge. Viaja por dois meses até chegar à casa de seu avô paterno, José Amado, em Itaporanga, no Sergipe. É matriculado no Ginásio Ipiranga, novamente como interno. Conhece Adonias Filho e dirige o jornal do grêmio da escola, "A Pátria". Pouco tempo depois funda "A Folha", que fazia oposição ao primeiro. No ano de 1927, passa para o regime de externato e vai morar num casarão no Pelourinho. Emprega-se como repórter policial no "Diário da Bahia". Pouco depois vai para o jornal "O Imparcial". Uma poesia de sua autoria, "Poema ou prosa", é publicada na revista "A Luva". Conhece o pai-de-santo Procópio, que o nomeará Ogã (protetor), o primeiro de seus muitos títulos no candomblé.
Reúnem-se em torno do experimentado jornalista e poeta Pinheiro da Veiga os integrantes da Academia dos Rebeldes. A Academia fazia oposição ao grupo Arco & Flecha e pregava, no dizer de Jorge Amado, "uma arte moderna sem ser modernista". Os trabalhos de seus integrantes são publicados nas revistas, "Meridiano" e "O Momento", ambas fundadas por eles.
Em 1929, começa a trabalhar em “O Jornal” onde publica, sob o pseudônimo de Y. Karl, a novela "Lenita", escrita em parceria com Dias da Costa e Edison Carneiro, que assinavam como Glauter Duval e Juan Pablo.
No ano seguinte transfere-se para o Rio de Janeiro para estudar. Conhece Vinicius de Moraes, Otávio de Faria e outros nomes importantes da literatura. "Lenita" é editada em livro por A. Coelho Branco Filho, do Rio de Janeiro.
Aprovado, entre os primeiros colocados, na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, em 1931, Jorge vê publicado pela Editora Schmidt seu primeiro romance, "O país do carnaval", com prefácio de Augusto Frederico Schmidt e tiragem de mil exemplares. O livro recebe elogios dos críticos e torna-se um sucesso de público.
No ano de 1932, conhece José Américo de Almeida, Amando Fontes, Rachel de Queiroz (através de quem se aproxima dos comunistas) e Gilberto Freyre. Sai a segunda edição de "O país do carnaval". Aconselhado por Otávio de Faria e Gastão Cruls, desiste de publicar o romance "Rui Barbosa nº. 2"; para eles, o livro não passava de uma cópia de "O país do carnaval". Viaja para Pirangi, na Bahia; impressionado com a vida dos trabalhadores da região, começa a escrever "Cacau". A Ariel Editora, do Rio, em 1933, publica "Cacau".
Jorge tem acesso, através de José Américo de Almeida, aos originais de "Caetés", romance de Graciliano Ramos. Empolgado com o talento do escritor alagoano, viaja para Maceió só para conhecê-lo, iniciando uma amizade que duraria até a morte de Graciliano. Conhece também José Lins do Rego, Aurélio Buarque de Holanda e Jorge de Lima. Torna-se redator ¬chefe da revista "Rio Magazine". Casa-se em dezembro, em Estância, Sergipe, com Matilde Garcia Rosa. Juntos, eles lançam, pela Schmidt, o livro infantil “Descoberta do mundo”.
Em 1934, publica — também pela Ariel — o romance "Suor".
Escreve em "A Manhã", jornal da Aliança Nacional Libertadora, pelo qual cobre a viagem do presidente Getúlio Vargas ao Uruguai e à Argentina. "Cacau" é publicado pela Editorial Claridad, de Buenos Aires. Neste mesmo ano "Cacau" e "Suor" seriam lançados em Moscou. Conclui o curso de Direito. Lança "Jubiabá" pela José Olympio Editora.
Sofre sua primeira prisão em 1936, por motivos políticos: acusado de participar do levante ocorrido em novembro do ano anterior em Natal — chamado de "Intentona Comunista” — é detido no Rio. Publica “Mar morto”, que recebe o Prêmio Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras.
Jorge Amado termina de escrever Capitães da Areia a bordo de um navio a caminho do México, durante uma viagem pela América Latina e pelos Estados Unidos. Enquanto isso, no Brasil, Getúlio Vargas instituía o Estado Novo. Na volta ao país, em novembro de 1937, o escritor foi preso novamente, agora em Manaus pela polícia do novo regime.
Seus livros, considerados subversivos, são queimados em plena Salvador por determinação da Sexta Região Militar. Segundo as atas militares, foram queimados 1.694 exemplares de "O país do carnaval", "Cacau", "Suor", "Jubiabá", "Mar morto" e "Capitães da areia".
Liberto, em 1938, o escritor é mandado para o Rio. Muda-se para São Paulo, onde reside com Rubem Braga. Depois vai para a Bahia e em seguida, Sergipe; onde imprime uma pequena edição do livro de poemas “A estrada do mar”, que distribui para os amigos. Retorna ao Rio no ano de 1939. Exerce intensa atividade política, em decorrência das torturas de presos e a desarticulação do Partido Comunista. Torna-se redator-chefe das revistas Dom Casmurro e Diretrizes. Inicia colaboração com a revista Vamos ler; que manterá até 1941. Compõe, com Dorival Caymmi e Carlos Lacerda, a serenata "Beijos pela noite". Diretrizes publica o primeiro capítulo de "ABC de Castro Alves", em 1940, e edita também, em forma de folhetim, a novela "Brandão entre o mar e o amor", iniciada por Jorge Amado e continuada por José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Aníbal Machado e Rachel de Queiroz. Trabalha no jornal Meio-Dia.
Publica em Buenos Aires "A vida de Luís Carlos Prestes", em 1942. Embora editado em espanhol, o livro é vendido clandestinamente no Brasil. Volta ao país, mas é preso ao desembarcar em Porto Alegre. De lá é enviado para o Rio. Não permanece, porém, na então capital federal: a polícia decide despachá-lo para Salvador, onde fica confinado.
O ano de 1943 é o marco de sua volta às páginas de O Imparcial assinando a seção "Hora da guerra" e escrevendo pequenas histórias na coluna "José, o ingênuo", que reveza com o jornalista e escritor baiano Wilson Lins. Sai "Terras do sem fim", seu primeiro livro a ser vendido livremente após seis anos de censura.
Em 1944, a pedido de Bibi Ferreira escreve a peça "O amor de Castro Alves", mas a companhia teatral da atriz é desfeita antes da encenação. Lança "São Jorge dos Ilhéus". Desquita-se de Matilde.
Participa, em janeiro de 1945, na condição de chefe da delegação baiana, do I Congresso de Escritores, em São Paulo. O encontro termina com uma manifestação contra o Estado Novo. Jorge é preso por um breve período juntamente com Caio Prado Jr. O Barão de Itararé apresenta o romancista a Zélia Gattai na Boate Bambu, durante jantar em homenagem aos participantes do Congresso de Escritores. Sai no Brasil "A vida de Luís Carlos Prestes", rebatizado de "O cavaleiro da esperança". Em julho, passa a viver com Zélia. No mesmo mês participa ao lado do poeta chileno Pablo Neruda (que em 1971 ganharia o Nobel de Literatura), do comício de Luís Carlos Prestes no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Lança "Bahia de Todos os Santos". É eleito, com 15.315 votos, deputado federal pelo PCB. Publica o conto "História de carnaval" na revista O Cruzeiro. "Terras do sem fim" sai pela respeitada editora A. Knopf, de Nova York.
No ano seguinte assume o mandato na Assembléia Constituinte e passa a residir no Rio de Janeiro. Várias de suas emendas, como a da liberdade de culto religioso e a que dispõe sobre direitos autorais, são aprovadas. Lança "Seara vermelha", "Homens e coisas do Partido Comunista". Entusiasmado com a leitura de "Jubiabá", chega à Bahia o fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger, que acabaria se radicando em Salvador e se tornando um dos amigos mais íntimos de Jorge Amado.
Publica, em 1947, pela Editora do Povo, do Rio de Janeiro, "O amor de Castro Alves". É um ano de vários acontecimentos na área do cinema para o escritor: a Atlântida compra os direitos de "Terras do sem fim"; ele escreve os diálogos do filme "O cavalo número 13", uma produção de Fernando de Barros e ainda o argumento de "Estrela da manhã", que seria dirigido por Mário Peixoto, encarregado também do roteiro (o filme acabou sendo feito, mas não por Peixoto). Nasce, no Rio de Janeiro, o filho João Jorge.
Com o cancelamento, em janeiro de 1948, do registro do Partido Comunista, o mandato de Jorge Amado é cassado. Sem assento na Câmara Federal e tendo seus livros considerados como "material subversivo", o escritor, ainda no mês de janeiro, parte em exílio voluntário para Paris. Em fevereiro, sua casa no Rio é invadida por agentes federais, que apreendem livros, fotos e documentos. Por motivos políticos, em 1950, o governo francês, expulsa Jorge Amado e sua família do país. O escritor, Zélia e João Jorge passam a residir em Dobris, Tchecoslováquia, no castelo da União dos Escritores. Realiza viagens políticas pela Europa Central e União Soviética. Escreve "O mundo da paz", livro sobre os países socialistas.
No ano seguinte, escreve o romance tripartido "Os subterrâneos da liberdade" (Os ásperos tempos, Agonia da noite e A luz no túnel). Sai no Brasil, pela Editorial Vitória, do Rio, o livro "O mundo da paz" pelo qual Jorge Amado seria processado e enquadrado na lei de segurança. Vai à China e à Mongólia, em 1952. Volta ao Brasil com a família fixando residência no apartamento de seu pai, no Rio de Janeiro. Responde ao processo por "O mundo da paz". O juiz responsável pelo caso arquiva o processo, dizendo que o livro "é sectário e não subversivo". Com a aprovação, nos Estados Unidos, da lei anticomunista, o escritor é proibido de entrar naquele país; seus livros também são vetados por lá.
O romance "Os subterrâneos da liberdade" é lançado em três volumes, em 1954. A trilogia provoca uma dura reação dos trotskistas brasileiros, gerando polêmica com o jornalista Hermínio Sacchetta (o "Abelardo Saquilá" do romance). Sai em Portugal, pela Editorial Avante, um folheto de seis páginas assinado por Jorge Amado e Pablo Neruda, cujo objetivo era contribuir para a libertação do líder comunista Álvaro Cunhal e marcar posição contra o salazarismo.
É lançada, pela Ricordi Brasileira, em 1956, a partitura de "Não te digo adeus", com letra de Jorge Amado e música do músico e maestro amazonense Cláudio Santoro. Assume no Rio a chefia de redação do quinzenário Para-todos, ao lado do irmão James, de Oscar Niemeyer e Moacir Werneck de Castro, dentre outros. Viaja ao Oriente ao lado de Zélia, Pablo e Matilde Neruda, em 1957. "Terras do sem fim" é lançado em quadrinhos. Carlo Ponti, cineasta italiano, compra os direitos de "Mar morto"; mas o filme não chega a ser realizado. Conhece a mãe-de-santo Menininha do Gantois, a quem ficaria ligado até a morte dela, ocorrida em agosto de 1986.
Na tranquilidade de Petrópolis, em 1958, escreve "Gabriela, cravo e canela". Sai o disco "Canto de amor à Bahia e quatro acalantos de Gabriela, cravo e canela", trazendo leituras de Jorge Amado e música de Dorival Caymmi.
Por unanimidade, é eleito, no dia 6 de abril de 1961 para a cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras, que pertencia a Otávio Mangabeira. No mesmo mês estréia na TV Tupi do Rio de Janeiro a adaptação de "Gabriela". Saí "Os velhos marinheiros", livro que comporta as novelas "A morte e a morte de Quincas Berro D’água" e "A completa verdade sobre as discutidas aventuras do comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão de longo curso". É eleito membro do Conselho da Presidência do Pen Club do Brasil. O presidente Juscelino Kubitschek convida-o para ser embaixador do Brasil na República Árabe Unida; o escritor recusa o convite.
"O cavaleiro da esperança" é apreendido pela polícia, em 1963. Lança "Os pastores da noite", em 1964.
No ano seguinte, publica o conto "As mortes e o triunfo de Rosalinda" na antologia "Os dez mandamentos", da editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro.
O escritor chega aos mil autógrafos no lançamento de "Dona Flor e seus dois maridos", na livraria Civilização Brasileira, em Salvador.
A União Brasileira de Escritores, presidida por Peregrino Jr., apresenta em Estocolmo a candidatura formal de Jorge Amado ao Prêmio Nobel de Literatura, em 1967, embora o escritor a recuse.
No ano de 1968 lança "Tenda dos milagres", Jorge dizia ter sido este seu melhor romance. Recebe em São Paulo o Prêmio Juca Pato - 1970, da União Brasileira de Escritores, como "Intelectual do Ano". Estréia o filme "Capitães da areia", produção americana dirigida por Hall Bartlett.
Estréia no cinema "Dona Flor e seus dois maridos", de Bruno Barreto, com Sônia Braga, José Wilker e Mauro Mendonça. Na Bahia, começa a escrever "Tieta do Agreste".
No ano seguinte, cercado de intensa campanha publicitária, é lançado no Rio o romance "Tieta do Agreste", que Jorge Amado concluíra em Londres. Estréia "Tenda dos milagres", filme de Nelson Pereira dos Santos. Interpreta um dos apóstolos de Cristo na cena da "Última Ceia" do filme A Idade da Terra, de Glauber Rocha. A casa onde o escritor viveu em Ferradas é tombada pela Prefeitura de Itabuna. Grava no Rio, para a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, trechos de seus romances "Os pastores da noite" e "Tereza Batista cansada de guerra".
Em 1978, Glauber Rocha realiza documentário abordando a obra de Jorge Amado. Sai "Farda fardão camisola de dormir", em 1979. A revista Vogue Brasil dedica um número a Jorge Amado, que escreve o texto "O menino grapiúna", onde conta reminiscências da época em que viveu na região cacaueira. Daí surgiu à idéia de "Tocaia Grande", que falaria do nascimento e desenvolvimento de uma cidade naquela área. Recebe o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia. É condecorado como Grande Oficial da Ordem de Santiago da Espada pelo presidente português Ramalho Eanes.
"O menino grapiúna" é lançado numa edição não-comercial, em 1981. Em 1984, publica "Tocaia Grande". Tenta retomar "Bóris, o vermelho", mas o deixa de lado para escrever "A guerra dos santos", título original do romance que se chamaria "O sumiço da santa".
Toma posse na Academia de Letras da Bahia (cadeira 21), em 1985. Recebe o título de Grão-Mestre da Ordem do Rio Branco, no grau de Grande Oficial, oferecido pelo governo brasileiro. Participa do Festival de Cinema de Cannes. É homenageado pelo Centro Georges Pompidou, de Paris, onde se realiza um debate sobre sua obra. Estréia na Rede Globo a minissérie "Tenda dos milagres". Lança, pela Berlendis & Vertecchia, de São Paulo, "O capeta Carybé", sobre o artista plástico argentino, nascido Hector Julio Páride Bernabó, seu amigo desde os anos 50, quando se instalou na Bahia.
Inaugurada, no dia 7 de março de 1987, a Fundação Casa de Jorge Amado, que passa a desenvolver intenso trabalho de preservação e divulgação da obra do escritor. O símbolo da Casa é um exu desenhado por Carybé, que já vinha aparecendo nas edições dos livros de Jorge Amado. Segundo o escritor, exu é um deus dos mais importantes nas religiões fetichistas; se elas admitissem a existência do diabo, ele seria o diabo. Recebe o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Lumière, da cidade francesa de Lyon. Paralelamente a "Bóris, o vermelho", escreve "Navegação de cabotagem", relato memorialístico, em 1991. Estréia na Rede Globo, em 1992, a minissérie "Tereza Batista" (com adaptação de Vicente Sesso, direção de Paulo Afonso Grisolli e Patrícia França no papel-título). Publica "Navegação de cabotagem". Uma série de eventos comemora os 80 anos do escritor. Para festejar a data, a Fundação Casa de Jorge Amado publica o livro "Jorge Amado: 80 anos de vida e obra", organizado por Maried Carneiro e Rosane Canelas Rubim.
Publica, em 1994, no Brasil, "A descoberta da América pelos turcos". Começa a escrever um romance provisoriamente intitulado "A apostasia universal de Água Brusca", que focaliza a luta pelo poder entre a igreja e os coronéis do sertão baiano.
Em maio de 1996, o escritor sofre em Paris um edema pulmonar. Depois de dez dias de internação, recebe alta e viaja para Salvador. Estréia "Tieta do Agreste", filme de Cacá Diegues, que também assina o roteiro, ao lado de João Ubaldo Ribeiro e Antonio Calmon. Em outubro, é submetido a uma angioplastia. A operação mobiliza atenções do país inteiro e é coroada de pleno êxito. Na saída do hospital o escritor anuncia que retomará "brevemente" seus projetos literários.
O romance "Tieta do Agreste" é escolhido como tema do carnaval de Salvador, em 1997. A editora Record lança "Milagre dos Pássaros", livro com conto ainda inédito no Brasil.
No Salão do Livro de Paris, em 1998, é uma das principais atrações e recebe o título de Doutor Honoris Causa na Sorbonne. Em maio de 1999, é hospitalizado para fazer exames de rotina e tratar de um mal-estar digestivo. Em junho, a Fundação Casa de Jorge Amado lança o livro "Rua Alagoinhas 33, Rio Vermelho", sobre a casa em que o autor vivia e sobre seu cotidiano.
Cada vez mais recluso, face aos seus problemas de saúde, comemora em agosto de 2000, com poucos amigos e a família, seus 88 anos. Vivia deprimido por se encontrar quase sem enxergar, sob dieta rigorosa, privando-se do que muito gostava: de escrever, de ler um bom livro e de um bom prato.
No dia 21 de junho de 2001, Jorge Amado é internado com uma crise de hiperglicemia e tem uma fibrilação cardíaca. Após alguns dias, retorna à sua casa, porém, em 06 de agosto volta a se sentir mal e falece na cidade de Salvador às 19,30 horas. A seu pedido, seu corpo foi cremado e suas cinzas foram espalhadas em torno de uma mangueira em sua residência no Rio Vermelho.
Capitães da Areia revelava-se então um livro profético: o escritor vivia história similar à do protagonista Pedro Bala, que acaba perseguido e detido por ter se tornado militante proletário? Quando publicado, o livro foi considerado subversivo e teve inúmeros exemplares apreendidos e queimados pela polícia em praça pública. Jorge Amado recebeu a notícia na cadeia.
O livro ganharia nova edição apenas em 1944. Desde então, tem sido o romance mais editado de Jorge Amado: já ultrapassou a marca de cento e vinte edições em português e foi publicado em mais de quinze países.
A narrativa ganhou versão em quadrinhos e foi adaptada para teatro e cinema. O filme The wild pack (1971), dirigido pelo americano Hall Bartlett, teve cenas rodadas em Salvador. Na TV, Capitães da Areia virou minissérie da Rede Bandeirantes em 1989, com direção de Walter Lima Jr.

II - CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL:
PANORAMA BRASILEIRO:
No Brasil, 1930 marca o ponto máximo do processo revolucionário, ou seja, é o fim da República Velha, do domínio das velhas oligarquias ligadas ao café e o início do longo período em que Vargas permaneceu no poder.
A eleição de 1º de março de 1930 para a sucessão de Washington Luís representava a disputa entre o candidato Getúlio Vargas, em nome da Aliança Liberal, que reunia Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, e o candidato oficial Júlio Prestes, paulista, que contava com o apoio das demais unidades da Federação. O resultado da eleição foi favorável a Júlio Prestes; entretanto, entre a eleição e a posse, que se daria em novembro, estoura a Revolução de 30, em 3 de outubro, ao mesmo tempo que a economia cafeeira sente os primeiros efeitos da crise econômica mundial.
A Revolução de 30, que levou Getúlio Vargas a um governo provisório, contava com o apoio da burguesia industrial, dos setores médios e dos tenentes responsáveis pelas revoltas na década de 1920 (exceção feita a Luís Carlos Prestes, que, no exílio, havia optado claramente pelo comunismo). Desenvolve-se, assim, uma política de incentivo à industrialização e à entrada de capital norte-americano, em substituição ao capital inglês.
Uma tentativa contra-revolucionária partiu de São Paulo, em 1932, como resultado da frustração dos paulistas com a Revolução de 30: a oligarquia cafeeira sentia-se prejudicada pela política econômica de Vargas; as classes médias e a burguesia temiam as agitações sociais; e, para coroar o descontentamento, Vargas havia nomeado um interventor pernambucano para São Paulo. A chamada Revolução Constitucionalista explodiu em 9 de julho, mas não logrou êxito. Se Guilherme de Almeida foi o poeta da Revolução paulista, tendo produzido vários textos ufanistas, Oswald de Andrade foi seu romancista crítico, como atesta seu livro Marco zero - a revolução melancólica.
Ainda em 32, a ideologia fascista encontra ressonância no nacionalismo exacerbado do Grupo Verde-Amarelo, liderado por Plínio Salgado, fundador da Ação Integralista Brasileira. Ao mesmo tempo crescem no Brasil as forças de esquerda. Em 1934, elas formam uma frente única: a ANL - Aliança Nacional Libertadora. Tornam-se frequentes os choques entre a extrema-direita e os membros da ANL, até que o governo federal manda fechá-la, por "atividade subversiva de ordem política e social", em julho de 1935. Entretanto, na clandestinidade, a ANL tenta uma revolução, em novembro desse mesmo ano, "contra o imperialismo e o fascismo" e "por um governo popular nacional revolucionário". Os revoltosos previam uma rebelião militar imediatamente acompanhada por revoltas populares, mas o movimento não foi além de três unidades militares, logo derrotadas; milhares de pessoas foram aprisionadas, e o governo obteve um pretexto para endurecer o regime.
Getúlio Vargas, auxiliado pelos integralistas, inicia sua ditadura em 10 de novembro de 1937. O chamado Estado Novo será um longo período antidemocrático, anticomunista, baseado num nacionalismo conservador e na idolatria de um chefe único: Getúlio Vargas. Essa situação se prolongará até 29 de outubro de 1945, quando, pressionado, Getúlio renuncia.
Tudo isso, formou um campo propício ao desenvolvimento de um romance caracterizado pela denúncia social, verdadeiro documento da realidade brasileira, atingindo um elevado grau de tensão nas relações do indivíduo com o mundo. Como relata os historiadores acima citados, o painel brasileiro dos anos 30, passava por uma transformação político-social, dando espaço para uma literatura engajada, de denúncia social e documental do verdadeiro retrato do Brasil.

III – CARACTERÍSTICAS:
Envolvidos com a crise econômica e política da época, a segunda geração modernista, ocupou-se com a discussão e a retratação da realidade brasileira gerada pela ditadura que se instalou no Brasil com Getúlio Vargas e as relações entre o homem e o mundo.
“Em 30 nós vivemos o problema do realismo, ou neo-realismo, socialista ou não, bem como a incorporação daquilo que as vanguardas do decênio anterior tinham proposto como inovação. Vivemos um grande surto do romance, ligado aos pontos de vista opostos na moda pela sociologia e a antropologia, como um triunfo do social contraposto às tendências espiritualistas e religiosas. Houve dilaceramentos e disputas, com a formação de um antipólo metafísico e as mais rasgadas polêmicas que marcaram todos nós.”
Antonio Candido, Companhia das Letras, 1993

A prosa de 1930 é chamada de Neo-Realismo pela retomada de alguns aspectos do Realismo- Naturalismo, contudo, com características particulares preservadas.
A literatura estava voltada para a realidade brasileira como forma de manifestar as recentes crises sociais e inquietações da implantação do Estado Novo do governo Vargas e da Primeira Guerra Mundial.
Os romancistas observam com olhos críticos a realidade brasileira, as relações entre o homem e a sociedade. Pelo fato dos romancistas deste período adotar como componente o lado emocional das personagens, faz com que esta fase se diferencie do Naturalismo, onde este item foi descartado.
O segundo tempo modernista é marcado pela consolidação das propostas da fase heróica (1922) ao mesmo tempo pelo afastamento do seu radicalismo.
Os autores dessa época adotaram um modernismo mais moderado, voltado para a realidade social e espiritual do Brasil.
A prosa modernista da segunda geração desenvolveu-se em duas tendências: o romance regionalista do Nordeste e o romance psicológico ou intimista.
JORGE AMADO, em largos painéis coloridos, retrata o regionalismo nordestino, mostrando a desgraça e a opressão do negro, do pobre e do trabalhador, nas zonas cacaueiras e urbanas da Bahia. Através desses tipos marginalizados, apresentados com humanidade, simpatia calorosa e um vivo senso do pitoresco, analisa toda uma sociedade.
Um grande expoente do Modernismo, sua maturidade literária se revela na capacidade de mesclar realismo e romantismo, lirismo poético e documento em sua narrativa, cuja linguagem explicita o falar de um povo e cuja ideologia se sobrepõe na forma de uma necessidade premente de justiça social. O caráter político e revolucionário das obras iniciais não se encontra nos romances pós década de 50, o que tem feito, críticos dividirem sua obra em diferentes temáticas:
- O Romance Proletário que retrata a vida rural e citadina de Salvador, com forte apelo social. Incluem-se nesse tipo: Suor, O País do Carnaval e Capitães da Areia;
- O "Ciclo do Cacau" tem como temas os latifúndios da região cacaueira e as lutas que, em tom épico, retratam a ganância dos coronéis, a exploração do trabalhador rural. Pertencem a esse ciclo: Cacau, Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus;
- A Pregação Partidária é constituída por um grupo de escritos de cunho político: O Cavaleiro da Esperança e O Mundo da Paz.
- A última fase se compõe de Depoimentos Líricos e Crônicas de Costumes e se inicia com Jubiabá e Mar Morto, cujos temas giram em torno das rixas e amores marinheiros. Consolidam-se com Gabriela, Cravo e Canela que, mesmo tendo Ilhéus e problemas políticos, como pano de fundo, tende mais para crônica amaneirada de costumes.
Para Bosi, a ideologia que permeia as obras de 30 e 40 foi abandonada. A partir daí, tudo se dissolveu "no pitoresco, no saboroso, no apimentado do regional".

IV – OBRA: CAPITÃES DA AREIA
4.1 – ESTRUTURA:
Capitães da areia é diferente dos demais romances de Jorge Amado não apenas por causa da temática, mas também em virtude de sua estrutura sui generis. A rigor, podemos dizer que o romance não tem propriamente um enredo. É aí que reside sua modernidade, pois o autor rompe com a tradição do romance convencional, que supunha rigorosa organização dos fatos e relações de causa e efeito entre os eventos. Capitães da areia é montado por meio de quadros mais ou menos independentes, que registram as andanças das personagens pela cidade de Salvador. Mas não só: ao lado da narração propriamente dita, Jorge Amado intercala também notícias de jornal, bem como pequenas reflexões poéticas. A força da narrativa advém do enredo solto, maleável, que parece flutuar ao sabor das aventuras dos pequeninos heróis.
De acordo com a teoria da literatura, há vários tipos de romance e os mais conhecidos são os de ação e de personagem. Capitães da areia pertence ao segundo tipo, porque, mais do que desenrolar uma ação, privilegia a existência, a movimentação de diferentes tipos sociais. Dessa maneira, Jorge Amado monta uma galeria bastante ampla de figuras que irão compor o quadro social de uma comunidade.
O fato de o escritor se prender às personagens e de montar os quadros soltos não implica, contudo, que o romance deixe de ter uma estrutura mais ou menos organizada. Pelo contrário, é possível perceber uma linha conduzida, ainda que de maneira tênue, por Pedro Bala, que organiza o grupo, determina-lhe a ação, graças à sua coragem e aos seus princípios, e que será uma das únicas personagens a fugir da alienação (juntamente com o Professor e Pirulito).
Outro aspecto que chama a atenção, no que diz respeito à estruturação da narrativa, é a divisão em partes do romance. Ao todo, são três, subdivididas em capítulos ora mais longos, ora mais curtos, precedidas de um pequeno prólogo de caráter jornalístico, que caracterizam e mostram diversas visões sobre o caso.
1. Prólogo – “Cartas à Redação”:
Jorge Amado utiliza o recurso do prólogo para criticar indiretamente os poderosos por meio da linguagem, examinada em diferentes níveis. Assim, a escrita redundante, grandiloquente das autoridades contrasta com a da mulher do povo. Ao mesmo tempo, o tom da reportagem parece colaborar para a feição realista do romance, como se o narrador quisesse dar a impressão para o leitor de que o que vai contar é absolutamente verdadeiro.
2. 1.ª parte – “Sob a lua, num velho trapiche abandonado”, formada de onze capítulos:
Conta algumas histórias quase independentes sobre alguns dos principais Capitães da Areia (o grupo chegava a quase cem, morando num trapiche abandonado, mas tinha líderes).
3. 2.ª parte – “Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos”, formada de oito capítulos:
Sub-titulada de "Noite da Grande Paz, da Grande Paz dos teus olhos", relata a história de amor que surge quando Dora torna-se a primeira "Capitã da Areia". Apesar de inicialmente os garotos tentarem estuprá-la, Dora vira uma espécie de mãe para eles. "Canção da Bahia, Canção da Liberdade".
4. 3.ª parte – “Canção da Bahia, canção da liberdade”, formada de oito capítulos:
Mostra a desintegração dos líderes.

4.2 - ESPAÇO:
O espaço em Capitães da areia tem função capital, pois não só determinará o comportamento das personagens, como também quase chega a se constituir numa personagem, com vida própria. Como determinante, divide-se em diferentes segmentos. O mais amplo deles será obviamente a cidade da Bahia, com todos os seus recantos, limitada pelo mar. Outros espaços poderiam ser considerados, como a cidade do Rio de Janeiro, a cidade de Ilhéus e o sertão, contudo, têm eles valor secundário, porque são apenas referidos pelo narrador (é para lá que vão o Professor, o Gato e o Volta-Seca, respectivamente).
Na cidade da Bahia, destaca-se de maneira evidente o trapiche, onde moram as crianças. É nele que os meninos abandonados encontram abrigo contra as intempéries e contra os inimigos. Situado na areia, junto ao mar, constitui um espaço de ninguém, e o fato de ter servido no passado como armazém e agora como o lar dos meninos de rua serve para ilustrar um desvirtuamento de função e a condição de marginalidade das crianças. Isso porque ele, ao mesmo tempo, pertence e não pertence à cidade que parece querer evitar os desvalidos da sorte, condenando-os a viver num espaço semidestruído, abandonado, que serve de pousada para ratos e cães, assim descritos pelo narrador:
O mesmo se pode dizer de algumas casas onde moram os burgueses e que se caracterizam pelo grandioso:
O 611 era uma casa grande, quase um palacete, com árvores na frente. Numa mangueira, um balanço onde uma menina da idade de Dora se divertia. [...] (p. 159)

O efeito de contraste acentua nitidamente as diferenças sociais, a marginalização dos desprotegidos. Observe-se, neste fragmento, tal idéia, mediante a engenhosa utilização da metonímia:
[...] As luzes se acenderam e ela achou a princípio muito bonito. Mas logo depois sentiu que a cidade era sua inimiga, que apenas queimara os seus pés e a cansara. Aquelas casas bonitas não a quiseram. [...] (p. 161-2)
As cidades e as casas, metonimicamente, substituem as pessoas, pois são estas que rejeitam Dora. O narrador utiliza-se desse expediente para mostrar que o espaço, além de determinante, pode se constituir também numa extensão das pessoas. A miséria das crianças é, desse modo, representada pela pobreza do trapiche que, no entanto, tem a vantagem de ser um espaço aberto e receptivo, enquanto as mansões, geralmente cercadas por grades, seriam um espaço desumano, porque confina as pessoas e impede a entrada de quem não pertence ao mesmo círculo de seus habitantes.
Mas outro espaço é fundamental na composição do romance: a cidade como um todo. Pelo fato de a obra ter como pano de fundo o cenário urbano, ele se transforma num mistério e atiça o desejo de conquista das crianças. Em outras palavras, a cidade simboliza todos os sonhos e desejos, por isso funciona como espaço físico e espaço psicológico dentro de Capitães da areia.

4.3 – TEMPO:

O tempo, relativamente extenso, mas impreciso, compreende um retalho da vida dos meninos, desde a infância até a maturidade. Contudo, o leitor tem a oportunidade de conhecer com mais intensidade o tempo da adolescência, já que o tempo da infância das crianças comparece por meio de analepses (retorno ao passado), fórmula de que o narrador lança mão para mostrar a formação delas e as razões do desamparado no presente. Grosso modo, acompanhando-se a trajetória de Pedro Bala, a personagem principal, poder-se-ia dizer que Capitães da areia tem como espaço de tempo de três a quatro anos, suficientes para a transformação do menino ladrão em líder proletário, engajado num movimento revolucionário.
E como é que se desenrola esse tempo no romance? De maneira cronológica, pois há nítida ordenação dos acontecimentos, numa sequência rigorosa de passado e presente. Os breves intervalos em que ocorrem as analepses acabam por não perturbar a ordem temporal, porque o narrador separa claramente os fatos presentes dos fatos pretéritos.
Outro aspecto sobre o qual valeria refletir é o seguinte: as noites predominam sobre os dias, como se as personagens vivessem uma aventura noturna por excelência. Por que a predominância da noite? Em primeiro lugar, porque a noite vai representar o momento de mistério, de inspiração poética. Em segundo lugar, porque representa o momento privilegiado em que os Capitães da Areia agem, em oposição ao dia claro, quando os burgueses estão em plena atividade.

4.4 – FOCO NARRATIVO:
Em Capitães da areia, encontramos esta última espécie de foco narrativo, pois Jorge Amado usa sistematicamente a terceira pessoa do discurso: “João Grande vem vindo para o trapiche” (p. 23); “Pedro Bala, enquanto subia a ladeira da Montanha, revia mentalmente seu plano” (p. 93) etc. Ao se utilizar da terceira pessoa, a voz que narra tem a vantagem de poder acompanhar a multidão de personagens, deslocar-se de uma para outra, porque possui a onisciência, ou seja, nesse caso, “o narrador configura-se como um autêntico demiurgo que conhece todos os acontecimentos na sua trama profunda e nos seus últimos pormenores, que sabe toda a história da vida das personagens, que penetra no âmago das consciências como em todos os meandros e segredos da organização social A focalização deste criador onisciente é panorâmica e total.”
Não é difícil verificar que o narrador de Capitães da areia tem a plena liberdade de distanciar-se ao máximo das personagens, quando adota uma visão panorâmica. São frequentes no romance os momentos em que ele privilegia o espaço amplo da cidade:
A grande noite de paz da Bahia veio do cais, envolveu os saveiros, o forte, o quebra-mar, se estendeu sobre as ladeiras e as torres das igrejas. [...] (p. 22)
O narrador reina soberano sobre toda a cidade, a ponto de enumerar diferentes construções e objetos, desde os que estão no mar até os que estão dentro da cidade.
Outro recurso de que se serve Jorge Amado é o de fazer com que o narrador principal ceda a voz a narradores secundários por meio de personagens que contam os fatos, como neste trecho:
Gato contou que a solteirona era cheia do dinheiro. Era a última de uma família rica, andava pelos quarenta e cinco anos, feia e nervosa. Corria a notícia de que tinha uma sala cheia de coisas de ouro, de brilhantes e jóias acumuladas pela família através de gerações. [...] (p. 224)
Mas Jorge Amado pode também criar um narrador todo especial, frio e pretensamente objetivo, quando traz para o romance, textos jornalísticos, principalmente no início do relato. Esse tipo de voz cria nítido contraponto com a voz apaixonada, lírica, do narrador, que acompanha de perto a vida das crianças. Com isto, não é difícil perceber que o narrador jamais é neutro, pois toma evidente partido ao assumir diferentes posturas narrativas, dependendo de que o alvo de sua atenção sejam as crianças ou os burgueses.
Não é à toa que Jorge Amado tenha produzido uma obra que reflete os princípios ideológicos da esquerda (o autor pertencia na época aos quadros do Partido Comunista). O enfoque em terceira pessoa impregnado de humanidade, a visão épica, a crítica ostensiva e indignada aos poderosos, a aderência aos humildes, a compreensão apaixonada dos dramas humanos somente servem para atestar a sua consciência de artista participante.

4.5 – LINGUAGEM:

Jorge Amado pertence a uma geração de escritores comumente conhecida como “regionalista”. A principal característica de estilo dessa geração foi a de contrapor uma linguagem mais espontânea, coloquial, popular, à linguagem rara, escolhida, herdeira dos vícios parnasianos e representativa da classe social dominante.
Jorge Amado não foge à regra: seu estilo prima pela espontaneidade, que é atingida graças à fuga da sintaxe de origem portuguesa e à imposição de uma sintaxe “brasileira”, por assim dizer. Capitães da areia transforma-se assim num repositório de linguagens populares, pois o escritor consegue registrar com maestria as falas de diferentes camadas sociais.
Outra marca estilística típica de Jorge Amado é a sem-cerimônia com que se utiliza de termos chulos, frequentemente extirpados da língua oficial ou ocultados por meio da linguagem eufemística.
Mas essa “popularização” da linguagem não se dá somente no plano dos diálogos, porquanto o narrador também assimila um modo de falar mais natural, mais simples. E isso é conseguido com o uso sistemático da frase curta, incisiva, econômica.
Outro recurso de que se serve Jorge Amado para conseguir um efeito natural, espontâneo, é a repetição de uma palavra ou expressão, ao longo de um parágrafo, que acaba por ter um surpreendente efeito plástico, musical:
A revolução chama Pedro Bala como Deus chamava Pirulito nas noites do trapiche. É uma voz poderosa dentro dele, poderosa como a voz do mar, como a voz do vento, tão poderosa como uma voz sem comparação. Como a voz de um negro que canta num saveiro o samba que Boa-Vida fez:
Companheiros, chegou a hora...
A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração. Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. Uma voz que atravessa a cidade, que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da religião ilegal dos negros. Uma voz que vem com o ruído dos bondes, onde vão os condutores e motorneiros grevistas. Uma voz que vem do cais, do peito dos estivadores, de João de Adão, de seu pai morrendo num comício, dos marinheiros dos navios, dos saveiristas e dos canoeiros. Uma voz que vem do grupo que joga a luta da capoeira, que vem dos golpes que o Querido-de-Deus aplica. Uma voz que vem mesmo do padre José Pedro, padre pobre de olhos espantados diante do destino terrível dos Capitães da Areia. Uma voz que vem das filhas-de-santo do candomblé de Don’Aninha, na noite que a polícia levou Ogum. Voz que vem do trapiche dos Capitães da Areia. Que vem do reformatório e do orfanato. Que vem do ódio do Sem-Pernas se atirando do elevador para não se entregar: Que vem no trem da Leste Brasileira, através do sertão, do grupo de Lampião pedindo justiça para os sertanejos. Que vem de Alberto, o estudante pedindo escolas e liberdade para a cultura. Que vem dos quadros de Professor, onde meninos esfarrapados lutam naquela exposição da rua Chile. Que vem de Boa-Vida e dos malandros da cidade, do bojo dos seus violões, dos sambas tristes que eles cantam. Uma voz que vem de todos os pobres, do peito de todos os pobres. Uma voz que diz uma palavra bonita de solidariedade, de amizade: companheiro. [...] (p. 252-3)
A palavra “voz” reiterada várias vezes no texto é que serve para fundir diferentes consciências que integram o mundo de Pedro Bala. Para sugerir uma sinfonia de vozes que chama a personagem para cumprir seu destino, Jorge Amado serve-se da repetição do termo, mas procurando dar-lhe diferentes inflexões. Esse recurso pode também conseguir um efeito contrário ao da exaltação, servindo para reforçar uma idéia de negatividade:
A vitalina o espera para o amor. Está como uma esposa a quem o marido abandonasse. Chora e se lastima. Seu amor não vem, ela também precisa de amor; como todas essas moças que passam de vestidos bonitos na rua.
Mas o roubo a enfurece. Porque pensa que Sem-Pernas só a amou nas noites longas de vícios para a furtar. Sua sede de amor é humilhada. É como se houvessem cuspido na sua cara, dizendo que era por causa da sua feiúra. Chora, não geme mais uma canção de amor. Se sente com coragem para estrangular o Sem-Pernas se o encontrasse. Porque burlaram do seu amor, da sede de amor que está no seu sangue. A sua desgraça é mais completa porque durante uma semana foi plenamente feliz com as migalhas de amor. Rola no chão com um ataque. (p. 228)
Aqui se salienta a repetição da palavra amor – desse modo, o vocábulo que tem um sentido positivo passa a ter um sentido negativo dentro do contexto. A sua repetição só faz acentuar o seu contrário, a ausência de um bem inestimável.
Mas, no trecho citado, outra peculiaridade do estilo de Jorge Amado nos chama a atenção: o uso do verbo no presente do indicativo que serve para criar cenas de maior força dramática, porque o fluxo narrativo repentinamente se interrompe para o registro da intimidade das personagens. Infere-se desses traços do estilo de Jorge Amado, além da tentativa de registro da linguagem popular, a busca da poeticidade, como se o escritor, mais do que se simplesmente documentar um caso social, procurasse transmitir ao leitor uma aproximação afetiva com a terra baiana. São freqüentes os momentos em que o narrador interrompe a narrativa para falar da cidade misteriosa que ama ou mesmo da natureza:
[...] Os sinos já não tocam as ave-marias que às seis horas há muito que passaram. E o céu está cheio de estrelas, se bem a lua não tenha surgido nesta noite clara. [...] (p. 22)
Nem parecia um meio-dia de inverno. O sol deixava cair sobre as ruas uma claridade macia, que não queimava, mas cujo calor acariciava como a mão de uma mulher. No jardim próximo, as flores desabrochavam em cores. Margaridas e onze-horas, rosas e cravos, dálias e violetas. Parecia haver na rua um perfume bom, muito sutil, [...] p. 100)
As imagens poéticas sempre presentes evitam a simples e objetiva descrição de um mero cenário, porque elas acabam por humanizá-lo. Com o recurso do lírico, Jorge Amado consegue realizar a plena interação entre o mundo das personagens e o espaço em que elas vivem. Com isto, ele altera o sentido de propriedade: são os pobres, os deserdados da sorte que possuem a cidade mágica da Bahia, porque só eles é que são capazes de admirar sua beleza secreta, seus mistérios e responder à sua voz, ao passo que, para as classes elevadas, a cidade não passa de um espaço físico, frio e desumanizado, onde exercem seu falso domínio.




As personagens num romance compreendem geralmente uma principal, as secundárias e aquelas que funcionam apenas como pano de fundo. No caso de Capitães da areia, logo de início descobrimos que Pedro Bala será o herói de toda a narrativa, não só porque é o primeiro a ser apresentado, mas também porque o narrador lhe acentua as naturais características de chefe, de líder. Além disso, ainda que não participe de todas as cenas, Pedro Bala irá se constituir numa espécie de linha condutora de todo o romance, servindo, assim, para dar unidade aos diversos quadros. Evidentemente, seu sucesso final serve para coroar de maneira simbólica a busca de todas as crianças, como se ele representasse, com sua vitória final, uma espécie de núcleo, ao realizar os desejos, os sonhos dos indivíduos marginalizados da cidade. Como coadjuvantes (ou personagens secundárias), encontramos João Grande, Sem-Pernas, Pirulito, Professor, Boa-Vida, Gato, Barandão, Altino, Volta Seca, padre José Pedro, Dora, Fuinha, Querido-de-Deus, João de Adão etc., uns com maior, outros com menor importância dentro do romance, de maneira que até seria possível pensar numa classificação, no que diz respeito ao modo de atuar das personagens da narrativa. Como o destaque é dado às crianças, as pessoas que vivem na cidade (burgueses, padres, à exceção do padre José, policias etc) terão participação menor no enredo, mas ainda assim são fundamentais, porque ajudam na caracterização do todo social.
As personagens de Capitães da areia, quanto à sua concepção, poderiam ser classificadas como planas, pois “são construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade”, segundo E. M. Forster (1969, p. 54). Com efeito, as personagens criadas por Jorge Amado não nos causam surpresa alguma ao longo do romance, porque têm uma ou duas características de que as outras são decorrentes. Pedro Bala é valente e ativo e, em razão disso, torna-se o líder do grupo, pautando todas as ações por essas qualidades essenciais. Ele jamais oscila ou vacila – na realidade, esta personagem representaria a concretização de uma virtude essencial que as demais crianças trariam embrionária dentro de si, e que, ou não teriam oportunidade de desenvolvê-la, ou acabariam por fazê-lo num grau inferior. É justamente por isso que Pedro Bala é a personagem principal.
Quanto às demais personagens, na ordem em que aparecem, são descritas de acordo com uma característica física, uma psicológica e com a função que exercem no grupo.
Uma das únicas pessoas de fora aceita pelo grupo, o padre José Pedro caracteriza-se pelo autêntico sentimento cristão. Desse modo, diferencia-se radicalmente do resto do clero da cidade e, por isso, é aceito pelos Capitães da Areia. Ele representa uma religião mais primitiva, voltada para os pobres, os humildes, longe do luxo dos cultos e das devoções beatas:
Para acentuar o aspecto “plano” de suas personagens e dar-lhes a categoria de tipos Jorge Amado serve-se engenhosamente dos apelidos. Os meninos são identificados pelo cognome extraído de uma qualidade ou de um defeito físico ou psicológico. O narrador, portanto, acaba por se utilizar da figura da metonímia, ou seja, a parte representando o todo, como se a qualidade ou o defeito principal de cada personagem se estendesse e dominasse todo o indivíduo, servindo-lhe de emblema e, em muitos casos, determinando-lhe toda a ação. Pedro Bala tem esse apelido porque o pai morreu a tiro nas ruas da cidade. A bala que ele carrega no nome é que estabelecerá a ligação entre suas ações e as do pai, e que fará com que ele descubra, no final do romance, o seu destino como autêntico líder. João Grande, por sua vez, ganha o apelido devido à estatura, o Sem-Pernas, pelo defeito físico, o Professor, por seu intelecto, o Gato, em razão de sua agilidade, e o Boa-Vida, devido à preguiça, a malandragem.
Mas os apelidos têm outra função, além de indicar, logo de início, o modo de ser de cada personagem. Constituem como que uma distinção pessoal dos membros do grupo em relação aos demais habitantes da cidade. Não é difícil observar que enquanto todos os membros dos Capitães da Areia são apelidados, as pessoas que não pertencem a eles, com exceção do Querido-de-Deus, apenas possuem nomes próprios. Esse fato serve para acentuar a idéia de que os Capitães da Areia formam um grupo fechado, a que têm acesso somente aqueles a quem as crianças respeitam e amam.
Fora isso, as personagens têm nomes muito comuns: José, João, Pedro, Dalva etc., o que atesta a origem e condição humilde delas. Mas entre todos os nomes, dois deles se destacam exatamente pela sua carga simbólica: a de Pedro e o de Dora. O nome Pedro tem relação com pedra e representa a fortaleza, o caráter consistente do herói. Dora, por usa vez, lembra “dourado”, “ouro”, e tem relação metonímica com seus cabelos e no próprio nome. Ela terá um papel fundamental na formação dos meninos do trapiche, despertando neles os sentimentos, os afetos reprimidos. Pedro Bala, por exemplo, terá sua fortaleza contaminada pela afetividade, pela luminosidade de Dora. Somente por meio do amor é que terá oportunidade de fazer nascer em si à consciência social.
Quanto às demais personagens, ou são reconhecidos simplesmente pela profissão que exercem (padre, polícia, bedel etc.), ou têm nomes vulgares. Contudo, para algumas delas, o narrador utiliza-se de um expediente muito comum que é o de identificá-las por meio de um objeto, o emblema da riqueza, da prepotência etc. É o caso, por exemplo, de um homem que bate no Professor e que é identificado pelo uso de um sobretudo.
A estupidez, a falta de humanidade do homem passa, então, a ser representado pela veste, um índice não só de seus status, de sua posição social, como também da sua inadequação ao meio em que vive, pois o capote seria mais adequado a um clima frio ou temperado. É por isso que o Professor elegerá o “sobretudo”, símbolo da arrogância burguesa – ao roubá-lo do homem, acaba por criar um símbolo que o perseguirá vida afora.
Esse expediente narrativo será retomado em outras passagens, como naquela em que uma velha senhora recrimina o padre José por ele estar em meio às crianças. Neste caso, a prepotência, a desumanidade da mulher será representada por um lorgnon (palavra de origem francesa que designa um tipo de óculos, sem hastes, montado numa armação com um cabo), pois, além de ser um objeto de luxo, indicando a classe social superior da senhora, é também um símbolo irônico de seu modo azedo de analisar criticamente a realidade: “E o lorgnon da velha magra se assestou contra o grupo como uma arma de guerra” (p. 72).
Em outros momentos, a personagem comparece indiretamente por intermédio de seu discurso, como acontece na carta que o diretor do reformatório dirige à redação do Jornal da Tarde, tratando dos menores abandonados:
Tenho acompanhado com grande interesse a campanha que o brilhante órgão da imprensa baiana, que com tão rútila inteligência dirigis, tem feito contra os crimes apavorantes os “Capitães da Areia”, bando de delinquentes que amedronta a cidade e impede que ela viva sossegadamente. (p. 13)
Expressões como “brilhante órgão da imprensa baiana”, uma antonomásia (a indicação de um objeto por sua qualidade, no caso, o Jornal da Tarde), e “rútila inteligência” e o uso de pronomes vós (“dirigis”) atestam o formalismo, a afetação de quem escreve e são evidentemente índice de um caráter. O mesmo se pode dizer das falas em que a escolha do vocabulário determina a classe social da personagem, como nos exemplo abaixo:
- O senhor não se envergonha de estar nesse meio, padre? Um sacerdote do Senhor? Um homem de responsabilidade no meio desta gentalha... (p. 72)
- Tu vai longe, menino. Tu pode enricar com essas treitas. (p. 46)
No primeiro exemplo, quem fala é uma velha senhora, e expressões como “sacerdote do Senhor” e “gentalha” denunciam sua classe social e sua desumanidade, pela maneira depreciativa com que vê os pobres. Já no segundo exemplo, o uso do pronome “tu” (segunda pessoa), com os verbos “poder” e “ir” na terceira, a utilização de palavras como “enricar” e “treitas”, apontam a origem social humilde da personagem. Mas não só isso a afetividade com que frase é enunciada dá amostras de um caráter bom e generoso.

V – RESUMO: CAPITÃES DA AREIA


PARTE I: SOB A LUA NUM VELHO TRAPICHE ABANDONADO
O TRAPICHE

“Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem. Antigamente aqui era o mar. Nas grandes e negras pedras dos alicerces do trapiche as ondas ora se rebentavam fragorosas, ora vinham se bater mansamente. A água passava por baixo da ponte sob a qual, muitas crianças repousam agora, iluminadas por uma réstia amarela de lua. Desta ponte saíram inúmeros veleiros carregados, alguns eram enormes e pintados de estranhas cores, para a aventura das travessias marítimas. Aqui vinham encher os porões e atracavam nesta ponte de tábuas, hoje comidas. Antigamente diante do trapiche se estendia o mistério do mar-oceano, as noites diante dele eram de um verde escuro, quase negras, daquela cor misteriosa que é a cor do mar à noite. Hoje a noite é alva em frente ao trapiche. É que na sua frente se estende agora o areal do cais do porto. Por baixo da ponte não há mais rumor de ondas. A areia invadiu tudo, fez o mar recuar de muitos metros. Aos poucos, lentamente, a areia foi conquistando a frente do trapiche. Não mais atracaram na sua ponte os veleiros que iam partir carregados. Não mais trabalharam ali os negros musculosos que vieram da escravatura. Não mais cantou na velha ponte uma canção um marinheiro nostálgico. A areia se estendeu muito alva em frente ao trapiche. E nunca mais encheram de fardos, de sacos, de caixões, o imenso casarão. Ficou abandonado em meio ao areal, mancha negra na brancura do cais.
Di Cavalcanti
Durante anos foi povoado exclusivamente pelos ratos (...). Em certa época um cachorro vagabundo o procurou como refúgio contra o vento e contra a chuva. O cachorro partiu depois de uns dias e os ratos voltaram até que os Capitães da Areia lançaram as suas vistas para o casarão abandonado.”
“Seria bem melhor dormida que a pura areia, que as pontes dos demais trapiches onde por vezes a água subia tanto que ameaçava levá-los. E desde esta noite uma grande parte dos Capitães da Areia (meninos, moleques de todas as cores e de idades desde os 9 aos 16 anos) dormia no velho trapiche abandonado, em companhia dos ratos, sob a lua amarela. Na frente, a vastidão da areia, uma brancura sem fim. Ao longe, o mar que arrebentava no cais. Pela porta viam as luzes dos navios que entravam e saíam. Pelo teto viam o céu de estrelas, a lua que os iluminava.”
Pedro Bala, 15 anos de idade, atual chefe dos Capitães da Areia, vagabundeia nas ruas da Bahia há dez anos. “Nunca soube de sua mãe, seu pai morrera de um balaço” quando se integrou ao grupo o chefe era Raimundo, o Caboclo, mulato avermelhado e forte. Um dia Pedro Bala e Raimundo brigaram. Raimundo estava armado e fez uma cicatriz no rosto de Pedro que ficou para sempre. Os moleques deram razão ao Pedro e temiam uma revanche.
Uma noite Raimundo surrou Barandão, Pedro Bala “comprou a briga” e rolando-se no areal, Pedro Bala venceu a luta e Raimundo deixou a chefia, o grupo e partiu tempos depois num navio. Desde então, Pedro Bala conquistou a chefia do grupo.
NOITE DOS CAPITÃES DA AREIA
João Grande é o mais alto do grupo, e o mais forte, negro de carapinha baixa e músculos retesados. Tem treze anos e faz parte dos Capitães há quatro anos. Seu pai, um carroceiro gigantesco, foi atropelado por um caminhão quando tentava desviar o cavalo para um lado da rua. Desde desse dia, João Grande nunca mais voltou para a sua casa.
João Grande participava das reuniões dos chefes e da organização dos assaltos. Não era inteligente, porém disposto a qualquer briga. Os garotos pequenos tinham nele o seu protetor. Pedro Bala admirava o negrão, não por sua força; mas sim, por sua bondade.
João Grande havia tomado um trago de cachaça com o Querido-de-Deus, o mais célebre capoeirista da cidade, melhor que Zé Moleque que deixou fama no Rio de Janeiro. Ao ver João José, o Professor num canto tentando ler um livro de estórias que havia furtado de uma casa na Barra, aproxima-se do amigo.
João José frequentou somente um ano e meio a escola, mas era o único entre eles que lia corretamente. Depois, contava ao grupo as façanhas heróicas, as aventuras dos heróis, as lendas e causava quando comoção entre os moleques. Era franzino, magro e triste, o cabelo moreno caindo sobre os olhos apertados de míope. Sabia fazer mágicas com lenços e moedas e através de suas histórias transportava o grupo para outros mundos, despertando-os a imaginação e as fantasias. O Professor era sempre consultado sobre as estratégias de assaltos e ninguém podia imaginar que esse menino mais tarde, contaria a vida do grupo inteiro através de suas telas. “Talvez só o soubesse Don’Aninha, a mãe do terreiro da Cruz de Opô Afonjá, porque Don’Aninha sabe de tudo que Yá lhe diz através de um búzio nas noites de temporal.”
João Grande interrompe a leitura do Professor e quer saber do que se trata a história. O Professor conta que era sobre um negro macho de verdade e que quando ele terminasse a leitura contaria.
Do fundo do trapiche ouviam-se as risadas do Sem-Perna. Este era o espião do grupo: carismático e com um defeito físico na perna, ganhava facilmente a simpatia das famílias que o acolhiam e tratava-o como filho, aquele “bom menino perdido dos pais na imensidão agressiva da cidade”.
Sem-Pernas satirizava o Gato que estava louco por conseguir roubar um grande anel que vira no dedo de um senhor gordo que todo dia tomava o bonde de Brotas na Baixa do Sapateiro. Até que um dia, no aperto do bonde, conseguiu roubar o anel e agora, exibia-o. O Sem-Pernas ria dizendo que era uma porcaria, sem valor e feio; o Gato achava-o maravilhoso.
Pedro Bala chega ao trapiche e convoca uma reunião. Relata que o Gonzáles do 14 o procurou e que quer chapéus de feltro e de pouco uso. Sem-Pernas reclama das exigências do Gonzáles afirmando que o gringo ladrão paga uma miséria para eles.
Fica estipulado que o Sem-Pernas e o Professor cuidariam desse serviço, enquanto que, para o Grande e o Gato, Pedro tinha outro assunto a tratar, que envolvia o Querido-de-Deus.
Sem-Pernas procura Pirulito e comunica-lhe a pilhagem dos chapéus, escolhem os meninos que levariam e estudam as estratégias a serem executadas.
Pirulito era magro, muito alto, uma cara seca, meio amarelada, os olhos encovados e fundos, a boca rasgada e pouco risonha. O menino converteu-se à religião graças às conversas com o padre José Pedro. Trazia no seu canto dos quadros de santos: um Santo Antônio carregando um Menino Deus (Pirulito se chamava Antônio e tinha ouvido dizer que Santo Antônio era brasileiro) e uma Nossa Senhora das Sete Dores que tinha o peito cravado de setas que o menino depositava flores e ajoelhava-se para rezar. Pirulito pedia à Santa que o ajudasse a entrar naquele colégio que estava no Sodré, e de onde saíam os homens transformados em sacerdotes. Sem-Pernas ao aproximar-se do amigo e encontrando-o rezando pensou em fazer alguma pilhéria, mas ao ver a expressão de êxtase do amigo, ficou a espiá-lo meio a medo, possuído de um sentimento que era um pouco de inveja e um pouco de desespero.
O Sem-Pernas burlava com todos do grupo e logo que um novato entrava para os Capitães da Areia formava uma idéia ruim dele. Ele era agressivo e cruel, mas “no fundo do seu coração ele tinha pena da desgraça de todos. E rindo, e ridicularizando, era que fugia da sua desgraça. Era como um remédio.”
O Sem-Pernas buscava carinho das pessoas, uma coisa imediata que o livrasse da angústia da solidão e do sofrimento, diferente de Pirulito que buscava algo sublime, rogando aos céus.
Quatro garotos chegam ao trapiche narravam suas aventuras amorosas.

O Gato era o mais elegante do grupo: alvo e rosado. “Vinha do meio dos Índios Maloqueiros, crianças que vivem sob as pontes de Aracaju. Fizera a viagem na rabada de um trem. Conhecia bem a vida de um grupo de crianças abandonadas. E já tinha mais de 13 anos.”
Boa-Vida, mulato troncudo e feio tentou conquistá-lo. O mulato achava-o lindo. “O Gato tinha um ar petulante, e embora não fosse uma beleza efeminada, agradava a Boa-Vida, que, além de tudo, não tinha muita sorte com mulheres...O Gato era alto e sobre os seus lábios de 14 anos começava a surgir uma penugem de bigode que ele cultivava. Boa-Vida naquele momento o amou com certeza.”
Boa-Vida passou a mão nas coxas do Gato que se esquivou. Boa-Vida achou que devia insistir. À noite no trapiche, chamou-o para dividir o lençol. “Quando pensou que o outro estava dormindo o abraçou com uma mão e com a outra começou a puxar-lhe as calças devagarinho. Num minuto o Gato estava de pé e dizendo: - Tu te enganou, mulato. Eu sou homem.”
Boa-Vida não desistiu e agarrou o Gato à força. Mas o Gato desviou o corpo, passou-lhe a perna, Boa-Vida se estendeu de nariz. Algum tempo tornaram-se inimigos, mas agora fizeram às pazes e quando o Gato enjoa de uma garota, entrega-a ao Boa-Vida.
Os Capitães não gostavam de pagar mulheres. Tinham as negrinhas de dezesseis anos para derrubar no areal. Uma noite, o Gato vê Dalva, uma mulher de uns trinta e cinco anos, corpo forte, rosto cheio de sensualidade e a desejou imediatamente. Gato a seguiu e agora todas as noites, punha-se elegante na mesma esquina só para vê-la.
Ficou sabendo que ela tinha um amante, um tocador de flauta num café, que tomava o dinheiro que ela fazia e ainda tomava porres colossais na sua casa, atrapalhando a vida de todas as rameiras do prédio. Dalva nunca notou a sua presença. Gato esperava o flautista chegar e beijá-la, então, ia embora para o trapiche imaginando matar o flautista.
Uma noite o flautista não apareceu. Gato passeava de um lado para o outro na rua até que Dalva o notou e fez um sinal. Pediu-lhe que fosse à Rua Rui Barbosa, nº 35, procurar o Gastão e avisá-lo que ela estava o esperando.
No local indicado, o Gato encontrou o Gastão com outra mulher. Estavam os dois bêbados. Gato explica o motivo de sua visita e Gastão manda dizer a Dalva que não o amole mais!
Em seguida, convida-o para tomar um trago de cachaça. A mulher cobre-se e o Gato diz que: “Mesmo esse couro...não me tenta. Nem pra me tocar bronha.”
Gastão vai para a cama com a magricela e Gato aproveita para roubar a bolsa da prostituta.
Já, no quarto de Dalva, ele conta o sucedido e propõe dividirem o dinheiro roubado. Dalva inconformada com a notícia roga ao Senhor do Bonfim e manda Gato guardar o dinheiro.
Gato a pegou e a derrubou na cama. Depois que ela gemeu com o amor e com os tabefes que ele lhe deu, murmurou: “ – O frangote pareceu um homem...”
Gato rasgou o retrato do Gastão e Dalva diz que vai ensiná-lo coisas boas.
“Por isso o Gato sai toda meia-noite e não dorme no trapiche. Só volta pela manhã para ir com os outros para as aventuras do dia.”

Sem-Pernas ainda acordado viu que Barandão levantou-se e caminhou para o areal. O Sem-Pernas pensou que ele ia esconder qualquer coisa que furtara e não queria mostrar aos companheiros. Isso era um crime contra as leis do bando. Sem-Pernas o seguiu. Viu Barandão encontrar-se com um vulto: era Almiro, garoto de doze anos, gordo e preguiçoso. “Deitaram-se juntos, o negro acariciando Almiro. O Sem-Pernas chegou a ouvir palavras. Um dizia: meu filhinho, meu filhinho.”
“Todos procuravam um carinho, qualquer coisa fora daquela vida: o Professor naqueles livros que lia a noite toda, o Gato na cama de uma mulher da vida que lhe dava dinheiro, Pirulito na oração que o transfigurava, Barandão e Almiro no amor na areia do cais.”
Sem-Pernas não conseguia dormir, temia sonhar com o sofrimento que passou na cadeia.
Pedro Bala acordou com um barulho e viu um garoto aproximar-se do canto do Pirulito. Pensou tratar-se de pederastia. E ficou atento para expulsar o passivo do grupo, pois uma das leis do grupo era que não admitiam pederastas passivos. Mas, percebeu que se tratava de um furto. Pedro repreende o menino e diz que ele estava expulso do grupo. “Sabia que a vida de um expulso dos Capitães da Areia ficava difícil. Ou entrava para o grupo de Ezequiel, que vive todo dia na cadeia, ou acabava no reformatório.”
O menino chorava dizendo que só queria ver a medalhinha que Pirulito ganhou do padre José Pedro.
Pirulito acorda e intercede pelo menino. Depois, o menino confessa a verdade ao Pirulito: ao entrar em uma casa para roubar um paletó encontrou uma menina que perguntou o que ele queria e eles ficaram a conversar. O menino prometeu que voltaria no dia seguinte com um presente para ela. “Porque foi boa, boa assim comigo, sabe?”
Pirulito deu a medalha ao menino e pediu que ele não contasse a Pedro Bala.
Volta Seca chegou de madrugada no trapiche e estava ofegante. Acordou o Professor e pediu que lesse uma reportagem sobre o Lampião que o Diário trazia.
“Lampião tinha entrado numa vila da Bahia, matara oito soldados, deflorara moças, saqueara os cofres da Prefeitura.”

PONTO DAS PITANGUEIRAS




O Gato rouba no jogo de cartas e vence Pedro Bala e Querido-de-Deus. Apareceram dois marinheiros e quiseram jogar e também “perderam”. No término, Gato devolveu o dinheiro ao Querido-de-Deus e confessou-lhe tinha trapaça no jogo. Os Capitães esperavam um homem que viria tratar de negócios. Pouco ou quase nada sabiam sobre o assunto. Enfim surgiu um intermediário e a reunião foi adiada para a manhã seguinte.
O negócio era o seguinte: os Capitães tinham que invadir uma chácara, entrar no quarto de um funcionário e trocar um pacote que provavelmente estaria nesse quarto. O Sr. Joel, o negociador, concordou pagar aos Capitães a quantia de 150 bicos, mas não se responsabilizaria caso o negócio desse errado.
Pedro Bala acredita que o caso era de romance, que Joel tinha um relacionamento com a alguém da casa e fora descoberto pelo que fazia chantagem. Despistaram o cão de guarda e viram na janela um vulto de mulher.
Pedro entrou no quarto do empregado e não encontrou o pacote. Quando passava pela cozinha viu o empregado jogando paciência, sentado em cima embrulho. Então, chamou o João Grande e combinou que ele tocasse a campainha da casa e se escondesse. E assim foi feito. O empregado ao ouvir a campainha levantou-se, Pedro Bala aproveitou e trocou os embrulhos. Já do lado de fora, assustaram quando deram com a ausência de João Grande. Passado, alguns minutos o Grande chegou e explicou que na hora que tocou a campainha, uma dama desesperada e chorando abriu a janela. Ele ficou com pena da triste moça, subiu pela bica e disse a ela que não precisava mais chorar, pois tudo já estava resolvido. A dama pegou em sua mão, agradeceu-lhe e disse que Deus ia lhe ajudar. Pedro Bala bateu no ombro do negro como forma de aprovação.

AS LUZES DO CARROSSEL

O grande carrossel japonês era um pequeno carrossel envelhecido, com tintas desbotadas que o Nhozinho França armou em Itapagipe, bairro de operários de famílias pobres. O parque de Nhozinho França já fora o orgulho da meninada de Maceió noutros tempos. Possuía uma roda gigante, uma sombrinha e o carrossel. Nhozinho bebeu primeiro a sombrinha, depois a roda-gigante e como não queria separar-se do carrossel, desarmou-o e partiu pelas estradas. Depois de percorrer todas as cidadezinhas de Alagoas e Sergipe, penetrou na Bahia e até para o bando de Lampião ele deu função. Nhozinho estava desesperado: sem dinheiro para pagar o hotel, o transporte do carrossel, sua bebida e sua comida. Quando o bando de Lampião entrou na vila, os grandes cangaceiros ficaram entusiasmados com o carrossel, “acharam que mirar suas luzes rodando, ouvir música velhíssima da sua pianola e montar naqueles estropiados cavalos de pau...” E, o carrossel de Nhozinho França salvou aquela pequena vila de ser saqueada, das moças de serem defloradas e dos homens de serem mortos. Só dois policiais foram fuzilados pelos cangaceiros, assim mesmo antes que eles vissem o carrossel.
Essa história foi contada pelo próprio Nhozinho ao Volta Seca e ao Sem-Pernas enquanto contratava-os para ajudá-lo no parque.
Os meninos adoraram a proposta. Sem-Pernas, certa vez, comprou ingresso para andar num carrossel, mas o guarda o expulsou do recinto porque ele estava vestido de farrapos. Depois o bilheteiro não quis lhe devolver o dinheiro da entrada, então ele colocou as mãos na gaveta pegou o equivalente cinco vezes mais o que tinha pagado e saiu correndo aos gritos de: ladrão! Mas, Sem-Pernas preferiria ter rodado no carrossel...Agora um homem paga-lhe cervejas e convida-o para “viver uns dia junto a um verdadeiro carrossel [...] Nhozinho França era um ser extraordinário, algo como Deus, para quem rezava Pirulito, algo como Xangô, que era o santo de João Grande e do Querido-de-Deus. Porque nem o padre José Pedro e nem mesmo a mãe-de-santo Don’Aninha seriam capazes de realizar aquele milagre.”
No dia seguinte, eram quase cem crianças olhando o velho carrossel de Nhozinho França de bocas abertas de admiração. Volta Seca deu corda na pianola e uma valsa antiga embalava todos com o carinho e conforto da música.
É noite de sábado, Volta Seca vestido de cangaceiro e portando uma cartucheira fica na entrada do parque imitando animais e chamando o público. Sem-Pernas ajuda Nhozinho França manipular o motor e o carrossel não pára para alegria geral de todos. Certa hora, Nhozinho sugere uma troca e coloca Volta Seca no carrossel que toma o cavalo que serviu a Lampião.
Enquanto dura a corrida, Volta Seca vai gesticulando como se fosse um verdadeiro cangaceiro matando todos que visse à sua frente. Depois, é a vez de Sem-Pernas “girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os ame.”
Os Capitães combinaram de no dia seguinte todos irem ao carrossel. Mas, a visita do padre José Pedro mudou os planos. O padre conheceu o Boa-Vida e tornou-se amigo do grupo. Boa-Vida era uma espécie de parasita do grupo. De vez em quando, trazia algum objeto de valor roubado e entregava a Pedro Bala como forma de pagamento. Não gostava de trabalho honesto e nem desonesto; vagava pelas ruas, jardins e igrejas.
Um dia depois da missa, esperou todos saírem e tentou roubar um objeto de ouro da sacristia.
O padre José Pedro o surpreende e Boa-Vida diz que estava só olhando, que era de boa família, que não roubaria algo de uma igreja e que não era pagão. O padre sabia que o menino estava mentindo, mas era uma ótima oportunidade dele travar contato com as crianças abandonadas da cidade e trazer todos aqueles corações a Deus.
O padre sabia que no reformatório, as possibilidades eram remotas e não havia como convencer o diretor a não surrar as crianças. Ele fora operário numa fábrica de tecidos, antes de entrar para o seminário e um dia o diretor da fábrica recebeu a visita de um bispo que decidiu custear os estudos para alguém que tivesse vocação ao clero. José Pedro se prontificou e seguiu para o seminário. Nessa época, não era moço e não tinha estudo algum. Trabalhou como bedel para custear os seus estudos quando o diretor da fábrica deixou de pagar e quando se ordenou, seu maior desejo era catequizar as crianças abandonadas da cidade como também conquistar alguma influência para melhorar a sua situação. Sabia que teria dificuldades de tirar esses menores da liberdade das ruas, mas o padre confiava em algumas amigas para ajudá-lo: beatas velhas e religiosas que poderiam cuidar da educação dessas crianças. Ao mesmo tempo temia perder a confiança dessas crianças como também não tinha absoluta confiança naquelas solteironas velhuscas que viviam metidas na igreja e que aproveitavam os intervalos das missas para comentarem a vida alheia. Quando Boa-Vida apresentou-lhe ao grupo, o padre viu que era inútil pensar nesse projeto.
Naquele dia, o padre José Pedro veio fazer um convite ao grupo, tirou uma nota da carteira e convidou todos para andarem no carrossel. Os meninos explicaram que já estava agendado de irem ao carrossel naquela noite, graças ao Sem-Pernas e Volta Seca. O padre explica que uma viúva havia doado o dinheiro para a compra de velas e completa “Deus julgará se fiz bem.”
O padre acompanhou o grupo ao carrossel e o Professor desenhou Volta Seca vestido de cangaceiro. O Professor adquiria esse hábito há tempos atrás, e vivia desenhando transeuntes pelas ruas da cidade.
Uma beata, dona Margarida, ao ver o padre junto com os Capitães, insulta-o. “Pela madrugada os Capitães esqueceram que não eram iguais às demais crianças [...] esqueceram das palavras da velha de lorgnon. Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças cavalgando os ginetes do carrossel, girando com as luzes.”


DOCAS

Os meninos enquanto jogavam, esperavam a chegada do Querido-de-Deus. Pedro Bala e Boa-Vida foram para as docas e lá, encontraram João de Adão, um estivador negro e fortíssimo, antigo grevista, temido e amado em toda a estiva. Ao seu lado, uma negra vendia laranjas e cocadas. A negra Luísa pergunta a João de Adão se ele lembrava-se de Raimundo, o Loiro que morreu na greve.
João de Adão narra o episódio a Pedro Bala: “ – Tu tinha uns quatro anos. Depois disso tu andou um ano da casa de um pra casa de outro até que tu fugiu. Depois a gente só veio saber de tu quando tu já era chefe dos Capitães de Areia. [...] No dia que tu quiser tu tem um lugar aqui nas docas. [...] Porque o pai dele era Raimundo e morreu foi aqui mesmo lutando pela gente, pelo direito da gente. [...] A gente chamava ele de Loiro. Quando foi da greve fazia discurso pra gente, nem parecia um estivador. Foi pegado por uma bala.”
Pedro Bala perguntou por que ele não contou isso antes e a resposta foi que, ele era ainda pequeno para entender isso. Pedro pergunta sobre sua mãe. João de Adão disse que quando conheceu o Loiro, ele não tinha mulher. Mas que Pedro vivia com ele.
A negra interrompe a conversa e diz que a conheceu: “ Um pedaço de mulher. Corria uma história que teu pai tinha furtado ela de casa, que ela era de uma família rica lá de cima – e apontava a cidade alta. Morreu quando tu nem tinha seis meses.”
Pedro Bala orgulhoso de seu pai imaginava-se, trabalhando nas docas, brigando com policiais e morrendo em defesa dos direitos deles.
Ajudaram o Querido-de-Deus a desembarcar a pescaria e foram para o candomblé do Gantois, onde falaram que a miséria acabaria e anunciava que o dia de vingança dos pobres chegaria. Bala caminhava lembrando-se das palavras de João de Adão e da anunciação do dia da vingança dos pobres. Tudo isso oprimia o seu coração, “como aqueles fardos de sessenta quilos oprimem o cangote dos estivadores.” Portinari
No areal rumo ao trapiche deparou-se com uma negrinha bem jovem, talvez tivesse apenas quinze anos. “E o desejo cresceu dentro de Pedro Bala, era um desejo que nascia da vontade de afogar a angústia que o oprimia. [...] Pensava em derrubar a negrinha sobre a areia macia, em acariciar seus seios duros (talvez seios de virgem, sempre seios de menina), em possuir seu corpo quente de negra.”
Bala persegue a garota e ambos rolam na areia. O rosto da negrinha era de terror. “Vinha da casada avó e ia para sua casa, onde mãe e irmãs a esperavam. [...] Não sabia que a areia das docas é a cama de amor de todos os malandros, de todos os ladrões, de todos os marítimos, de todos os Capitães da Areia, de todos os que não podem pagar mulher e têm sede de um corpo na cidade santa da Bahia?”
A menina gritava e tentava salvar a sua virgindade, que tinham lhe ensinado que era preciosa. Bala “acariciava seus seios e ela, no fundo de seu terror, começava a sentir um fio de desejo [...] Bala nem por um momento pensou que a negrinha fosse virgem. Mas ela resistia e o xingava, e mordia, batia suas frágeis mãos no peito de Pedro Bala.”
A garota implorava à Bala que deixasse ir e gritava que era virgem. “Tu pode ser bom, não me quer. Depois tu encontra outra. Eu sou donzela, tu vai me fazer mal.”
Então Bala propôs a garota: “ – Só boto atrás. [...] Tu fica virgem igual. Não tem nada. Mas ele a acarinhava, uma cócega subiu pelo corpo dela. Começou a compreender que se não o satisfizesse como ele queria, sua virgindade ficaria ali. E quando ele prometeu (novamente sua língua a excitava no ouvido) se doer eu tiro...ela consentiu.”
Bala depois de satisfazer-se queria agora desvirginá-la. A menina tinha os seus olhos cheios de pavor, então, Bala fez o seguinte acordo: deixaria a garota partir desde que ela comprometesse a voltar amanhã, caso contrário, ela ia ver “com quantos paus se faz uma cangalha...”
Bala acompanhou a menina de mãos dadas e já se sentia arrependido. “Queria não a ter encontrado, não ter encontrado também João de Adão nem ter ido ao Gantois.”

AVENTURA DE OGUM

Don’Aninha foi até o trapiche pela tarde, precisava de um favor deles e caiu uma grande tempestade: “ – Ogum está zangado...- explicou a mãe-de-santo”.
“Numa batida num candomblé (que se bem não fosse o seu, porque nenhum polícia se aventurava a dar uma batida no candomblé de Aninha, estava sob a sua proteção)a polícia tinha carregado com Ogum, que repousava no seu altar. Don’Aninha tinha usado da sua força junto a um guarda para conseguir a volta do santo. Fora mesmo à casa de um professor da Faculdade de Medicina, seu amigo, que vinha estudar a religião negra no seu candomblé, pedir que ele conseguisse a restituição do deus. O professor realmente pensava em conseguir que a polícia lhe entregassea imagem. Mas para juntar à sua coleção de ídolos negros e não para reintegrá-la no seu altar no candomblé distante. Por isso, por estar Ogum numa sala de detidos na polícia, Xangô descarrega os raios nessa noite.”

Mãe Aninha - Iyálorixá do Ilê Axé Opó Afonjá na Bahia.

Don’Aninha alegava que além de não deixarem em paz os deuses dos pobres, agora tiram os santos dos pobres. Bala promete-lhe trazer de volta o Ogum.
Na volta ao trapiche, a chuva castigava. Nestas noites de chuva eles não podiam dormir. Muitos dos Capitães eram crianças que temiam dragões e monstros lendários. ”Ficavam todos amontoados e alguns tiritavam de frio, sob as camisas e calças esmolambadas.”
Um dia de verão, o Professor encontrou um estrangeiro vestido de sobretudo e começou a fazer um desenho dele e imaginou que o homem lhe daria uma prata de dois mil-réis. No desenho, o sobretudo dominava o homem; e, o estrangeiro não gostou do desenho, deu dois pontapés no Professor e saiu apagando com o pé o desenho. A garçonete veio ajudar o menino e deu-lhe umas moedas que ele não aceitou.
“Ele quisera agradar o homem, merecer uma prata dele. Tivera dois pontapés e palavras brutais.”
No caminho, o Professor encontrou-se novamente com o estrangeiro. O Professor tirou a navalha e tomou a frente do homem. O homem o olhou aterrorizado. Então, “o do sobretudo largou a correr quando o Professor saltou em cima dele e lhe cortou a mão com a navalha.” Deixou-o sangrando no chão e tomou outro rumo. Então, voltou à lanchonete, deixou o sobretudo e ficou sumido até que o navio partisse.
No trapiche, os meninos combinavam como resgatar o Ogum da polícia. Bala comunicava que se ele não aparecesse até de manhã, é porque estaria preso ou no reformatório, até ele conseguir fugir ou alguém tirá-lo de lá. João Grande e o Gato foram com ele. Volta Seca pensava no grupo do Lampião....
Bala reconhecia os valores de Don’Aninha: tratava dos doentes, trazia remédios feitos com folhas, recebia os Capitães como homens, “como a um ogã, dava-lhe do melhor para comer, do melhor para beber.”
Um guarda amigo de Don’Aninha contou que a imagem estava na sala de detidos, jogado sobre um armário...Naquela sala ficavam os presos detidos naquela noite. O plano de Bala era passar parte da noite nesse recinto e se possível reaver a imagem de Ogum.
Bala aproximou-se do guarda de disse
“ – Eu não sou daqui. Eu sou de Mar Grande, vim com meu pai hoje. [...] Eu não tenho onde dormir. Queria que o senhor deixasse eu dormir na polícia...”
Bala vai até a parada do bonde e quando desceu um casal, Bala se atirou em cima da mulher como que quisesse roubar a sua carteira e foi detido com facilidade por seu acompanhante.
Bala diz:
“ – Tudo que eu disse é verdade. Meu pai é marítimo, tem um saveiro em Mar Grande. Hoje me deixou aqui, não voltou com o temporal. Eu não sei onde dormir, pedi pra dormir na polícia. O senhor não deixou, eu fiz que ia roubar a mulher só pro senhor me pegar....Agora tenho onde dormir..”
Bala foi preso e viu um armário onde estava a imagem de Ogum, tirou o paletó e cobriu-a e “pôs a cabeça sobre o embrulho e fez que dormia”, enquanto os outros presos estavam ocupados com um pederasta, a Mariazinha.
Pedro ao ser libertado pediu para buscar seu paletó, acomodou a imagem envolvida nele e partiu.

DEUS SORRI COMO UM NEGRINHO
A Madonna Litta de Leonardo Da Vinci

Pirulito depois de ganhar um almoço na porta de uma casa de portugueses ricos caminhava pelas ruas ensolaradas e refletia se “estariam todos condenados ao inferno? O inferno era um lugar de fogo eterno, era um lugar onde os condenados ardiam uma vida que nunca acabava.”
“Padre José Pedro achava que Deus perdoaria e queria ajudá-los. E como não encontrava meios, e sim uma barreira na sua frente (todos queriam tratar os Capitães da Areia ou como a criminoso ou como a crianças iguais àquelas que foram criadas com um lar e uma família), ficava como que desesperado, por vezes fica atarantado. [...] Mas no dia em que o padre, desta vez ajudado pelo Querido-de-Deus, afirmou que aquilo era coisa indigna num homem, fazia um homem igual a uma mulher, pior que uma mulher, Pedro Bala tomou medidas violentas, expulsou os passivos do grupo.”
A população da cidade alta queria que os Capitães fossem para as prisões ou para os reformatórios; nas docas, João de Adão queria acabar com os ricos; o padre queria dar casa, escola, carinho e conforto. Pirulito fora a sua grande conquista. No dia que o padre José Pedro começou a falar de Deus, Pirulito começou a mudar os seus comportamentos e sonhava ser sacerdote do seu Deus e viver só para Ele.
Naquele dia, Pirulito ao passar numa loja de objetos religiosos ficou maravilhado ao ver uma imagem da Virgem da Conceição com o Menino. “Pirulito pensa que a Virgem está a lhe entregar Deus, Deus criança e nu, pobre como Pirulito. [...] Só que aquele era um menino negro e o Menino é branco. No mais a parecença é absoluta. Até uma cara de choro tem o Menino, magro e pobre, nos braços da Virgem. (...) Pirulito o levará consigo para o trapiche dos Capitães da Areia. Rezará para ele, cuidará dele, o alimentará com seu amor. Não vêem que, ao contrário de todas as imagens, ele não está preso nos braços da Virgem, está solto nas suas mãos, ela o está oferecendo ao carinho de Pirulito?
Pirulito havia jurado que só furtaria para comer ou quando fosse ordem de Bala. “Era um pecado (...) mas o dono da loja tinha tantos Meninos, e todos gordos e rosados...Este estava totalmente nu, tinha frio no ventre, era magro, nem do escultor tivera carinho.”
Pirulito teme o pecado, mas avança até a imagem, furta o Menino, encosta-o no peito e foge.
“Não olha o Menino. Mas sente que agora, encostado ao seu peito, o Menino sorri, não tem mais fome nem sede nem frio. Sorri o Menino como sorria o negrinho de poucos meses quando se encontrou no trapiche e viu que João Grande lhe dava leite às colheradas com suas mãos enormes, enquanto o Professor o sustinha encostado ao calor do seu peito. Assim sorri o Menino.”

FAMÍLIA

Boa-Vida fala a Pedro Bala sobre um casal de idosos que eram muito ricos. Pedro e o amigo foram até lá verificar. Uma empregada da casa saiu no jardim e os dois para disfarçarem pediram água. Bala faz um galanteio à moça e diz que irá esperá-la na saída.
No caminho de volta, Bala conclui que aquilo era serviço para o Sem-Pernas. Boa-Vida questiona se Bala já desistira da empregada. Bala responde que: “ – Nove horas tou firme aí...”
No dia seguinte Sem-Pernas tocou a campainha da casa dos velhos. A empregada demorou a ouvir, provavelmente lembrava-se da noite anterior que estivera nos braços de Bala. Uma senhora saiu à janela e perguntou o que ele queria. Sem-Pernas, respondeu:
“ – Dona, eu não tenho pai, faz só poucos dias que minha mãe foi chamada pro céu – mostrava um laço preto no braço, laço que tinha sido feito com a fita do chapéu novo do Gato, que se danara. – Não tenho ninguém no mundo, sou aleijado, não posso trabalhar muito, faz dois dias que não vejo de comer e não tenho onde dormir.”
Com voz chorosa oferecia-se para trabalhar na casa da senhora, pra fazer compras, ajudar no trabalho da casa e acrescentava “se eu quisesse me metia aí com esses meninos ladrão. Com os tal de Capitães da Areia. Mas eu não dou disso, quero é trabalhar. Só que não agüento um trabalho pesado. Sou um pobre órfão, tou com fome...”
A boa senhora enquanto ouvia o Sem-Pernas lembrava-se de seu filho que havia morrido com a idade daquele e que ao morrer matara toda a sua alegria e a do marido.
Dona Ester deu ordens à Maria José para arrumar o quarto de cima da garagem para o menino, mostrar-lhe o banheiro, dar-lhe um roupão e preparar uma comida. Sem-Pernas agradecia enquanto enxugava algumas lágrimas fingidas. Quando D. Ester perguntou-lhe o seu nome, Sem-Pernas deu o primeiro nome que lhe passou pela cabeça: Augusto. A mulher ficou comovida, pois Augusto era o nome de seu filho falecido.
“O Sem-Pernas agora olhava a senhora que desaparecia, e tinha raiva, mas não sabia se era dela ou de si mesmo.”
D. Ester recordava-se do seu filho brincando no jardim, aprendendo a ler e a escrever. Era um menino cheio de vida e de alegria, até que veio a febre e não resistiu.
Ela mantinha um retrato do filho na sala e seus pertences guardados numa mala. Depois da morte do menino, ela nunca mais quis ter filhos e evitava ver crianças brincando felizes para não avivar a dor das suas recordações. Mas, agora o caso era diferente: um menino órfão, pobre, triste, aleijado e com o mesmo nome de seu filho pede-lhe ajuda! Para ela, era o seu filho voltando na figura desta criança e que em breve traria a alegria de novo à sua casa.
“Dona Ester se levanta. Leva consigo a roupa azul de marinheiro. E é vestido com ela que o Sem-Pernas come o melhor almoço da sua vida.”
O Sem-Pernas se admirava no espelho vestido com aquela roupa que lhe caíra tão bem e com uns sapato que pareciam de mulher. Mas, queria fumar e tinha que ter muito cuidado. Em outras ocasiões, as senhoras o deixavam na cozinha com a criadagem e ele podia conversar em sua língua e fumar tranquilamente. Mas, dessa vez, foi diferente, almoçou na sala de jantar e foi tratado se ele fosse um menino bem criado. Sentou-se no banco do jardim e acendeu um cigarro (não se esquecera dos cigarros quando mudara de roupas) e refletiu sobre a situação: “muitas vezes já fizera aquilo: penetrar em casa de uma família como um menino pobre, órfão e aleijado e neste título passar os dias necessários para fazer um reconhecimento completo da casa, dos lugares onde guardavam os objetos de valor, das saídas fáceis para uma fuga. Depois os Capitães da Areia invadiam a casa numa noite, levavam os objetos valiosos, e no trapiche o Sem-Pernas gozava invadido por um grande alegria, alegria de vingança. [...] Porque o Sem-Pernas achava que eles eram todos culpados da situação de todas as criança pobres. E odiava a todos, com um ódio profundo. Sua grande e quase única alegria era calcular o desespero das famílias após o roubo...”
Sem-Pernas tentava encontrar um motivo para estar fumando escondido: será por que fora tratado de forma diferente? E sentia medo porque queria conservar o ódio no seu coração.
“E diante dos seus olhos passa a visão do homem de colete que vê os soldados a espancar o Sem-Pernas e ri numa gargalhada brutal. Isso há de impedir sempre o Sem-Pernas de ver o rosto bondoso de dona Ester, o gesto protetor das mãos do padre José Pedro, a solidariedade dos músculos grevistas do estivador João de Adão. Será sozinho e seu ódio alcança a todos, brancos e negros, homens e mulheres, ricos e pobres. Por isso teme que sejam bons para consigo.”
Raul, esposo de Dona Ester era um famoso advogado e um grande colecionador de obras de arte. Depois de ouvir a sua esposa, manda chamar o menino; olha-o com carinho e diz-lhe que nunca mais passará fome e que iam ao cinema. Em seguida, olha para a esposa e fala: “ – És uma santa. Vamos fazer dele um homem...”
No cinema não pode torcer pelo vilão e tinha que ouvir o filme em silêncio. Na lanchonete, Sem-Pernas quase pediu uma cerveja, mas contentou-se com um sorvete. Quando D. Ester o beijou e desejou-lhe boa noite “era como se o mundo houvesse parado naquele momento do beijo e tudo houvesse mudado.”
Passaram oito dias e Sem-Pernas não dava notícias. Pedro Bala ronda os arredores da casa para tentar contato com o amigo. Um dia conversando com a empregada pergunta-lhe se o casal tinha algum filho. Ela respondeu que estavam criando um menino bonzinho e tolinho.
Bala ao avistar Sem-Pernas espantou-se com a sua elegância, perguntou-lhe porque estava demorando a agir e comunicou-lhe sobre a doença do Gringo.
“O Gringo não era forte e nunca conseguira ser importante entre os Capitães da Areia, se bem Pedro Bala e Professor procurassem dar lugar a isso. Gostavam de ter entre eles um estrangeiro ou quase estrangeiro. Mas o Gringo se contentava com pequenos furtos, evitava os assaltos arriscados e ideava um baú cheio de bugiganças para vender nas ruas às criadas das casas ricas. O Sem-Pernas o maltratava sem piedade, burlando dele, do seu falar arrevesado, da sua falta de coragem.”
Sem-Pernas pensava no Gringo quase morrendo e naqueles oito dias que os Capitães continuaram mal vestidos, mal alimentados, dormindo sob a chuva no trapiche ou embaixo das pontes. “Enquanto isso, o Sem-Pernas dormia em boa cama, comia boa comida, tinha até uma senhora que o beijava e o chamava de filho. Se sentiu como um traidor do grupo. Era igual àquele doqueiro do qual fala João de Adão cuspindo no chão e passando o pé em cima com desprezo. Aquele doqueiro que na greve grande se passara para o outro lado, para o lado dos ricos. [...] E se para alguém o Sem-Pernas abria exceção no seu ódio, que abrangia o mundo todo, era para as crianças que formavam os Capitães da Areia. Estes eram seus companheiros, eram iguais a ele, eram vítimas de todos os demais, pensava o Sem-Pernas. E agora sentia que os estava abandonando, que estava passando para o outro lado.”
Teriam bastado três dias para ele localizar os objetos de valor da casa, mas o conforto e o carinho...Ele tinha sido comprado por este carinho como o estivador fora comprado por dinheiro. “Lembrou-se que das outras vezes, quando dava o fora de uma casa para ele ser assaltada, era uma grande alegria que o invadia. Desta vez não tinha alegria nenhuma.”
D. Ester vendo o menino chorar aproximou-se dele e o abraçou. Nunca saberia que o choro dele era um pedido de perdão.
O Raul teve que fazer uma viagem ao Rio de Janeiro e Sem-Pernas achou que era melhor ocasião para o assalto. À tarde, beijou D. Ester e disse que ia fazer um passeio até o Campo Grande. Naquela noite, Sem-Pernas ficou no seu canto no trapiche e ali ficou mordendo as unhas, sem dormir, até que Pedro Bala voltou com os outros, trazendo os resultados do assalto e afirmando que correra tudo bem. Sem-Pernas não quis ver os objetos roubados da casa de D. Ester e propôs ao Gato trocarem de roupas.
Sonhou que Raul vinha acompanhado pelos dois soldados que o haviam espancado na cadeia e que D. Ester dizia que ele não era mais seu filho.
No dia seguinte é publicada uma notícia no jornal:
“Ontem desapareceu da casa número...da rua..., Graça, um filho dos donos da casa, chamado Augusto. Deve ter se perdido na cidade que pouco conhecia. É coxo de uma perna, tem treze anos de idade, é muito tímido, veste roupa de casimira cinza. A polícia o procura para o entregar aos seus pais aflitos, mas até agora não o encontrou. A família gratificará bem quem der notícias do pequeno Augusto e o conduza a sua casa.”

MANHÃ COMO UM QUADRO

Pedro Bala e o Professor caminham pelas ladeiras da Bahia, admirando a bela paisagem. “A cidade está alegre, cheia de sol. Os dias da Bahia parecem dias de festa, pensa Pedro Bala, que se sente invadido também pela alegria.”
De onde estão podem ver o Mercado, o cais dos saveiros e o velho trapiche. Bala diz a Professor que ele devia retratar aquela vista maravilhosa. O Professor diz que é linda, “mas nunca pode ser um troço alegre. [...] Se eu tivesse tado numa escola como tu diz, tinha sido bom. Eu um dia ia fazer muito quadro bonito. Um dia bonito, gente alegre andando, rindo, namorando assim como aquela gente de Nazaré, sabe? Mas cadê escola? Eu quero fazer um desenho alegre, sai o dia bonito, tudo bonito, mas os homens sai triste, não sei não...Eu queria fazer uma coisa alegre.”
Bala tentando animar o amigo, diz: “ – Um dia tu ainda bota um bocado de pintura numa sala da rua Chile, mano. Sem escola sem nada. Nenhum destes bananas da escola faz uma cara como tu...Tu tem é jeito...[...] E tu faz meu retrato, hein. Bota o nome embaixo, não bota? Capitão Pedro Bala, macho valente.”
Pararam para ouvir um tocador de violão e seguiram para a Rua Chile. Quando viram um casal, Professor tirou o giz do bolso e desenhou o casal mais rápido que pode. Ganharam dois mil-réis e o desenho ficou no meio do passeio. Depois, retratou uma velhota que deu dez tostões por seu desenho.
Bala avistou um senhor com uma piteira longa, cabelos encaracolados que apreciam sob o chapéu e trazendo um livro na mão, e tratou logo chamar o Professor, dizendo:
“ – Faz deste que parece que é um pato cheio da nota...”
Quando terminou, Bala chamou a atenção do transeunte. O homem examinou minuciosamente o desenho e perguntou onde o Professor estudou desenho? Onde moravam? Por que ele havia retratado-o sentado e lendo um livro?
O senhor entregou-lhe seu cartão e pediu que lhe procurasse. A aproximação de um guarda fez que os meninos se apressassem. O senhor ia tirar uns níqueis da carteira, mas ao ver o olhar do Professor na sua piteira, apagou o cigarro e entregou a piteira ao menino.
O guarda aproximou-se do senhor perguntando-lhe se os Capitães tinham lhe furtado algo.
“O homem agradeceu ao guarda, afirmando mais uma vez que não tinha sido furtado, e desceu a rua, murmurando:
- Assim que se perdem os grandes artistas. Que pintor não seria!
O guarda o espiava. Depois comentou para os botões da farda:
- Bem dizem que estes poetas são doidos...”
Depois, nos fundos de um restaurante enquanto esperavam os restos do menu, o Professor fez do cartão do homem um palito e o enfiou na piteira. Quando terminou, jogou o cartão na rua. Bala questiona-o porquê ele fez aquilo e o Professor diz: “ – Deixa de ser besta, Bala. Tu bem sabe que do meio da gente só pode sair ladrão...Quem é que quer saber da gente? Quem: só ladrão, só ladrão...”
“Agora não riam mais e estavam tristes na alegria da manhã cheia de sol, da manhã igual a um quadro de um pintor das Belas-Artes.”

ALASTRIM

A epidemia de varíola alastrava a cidade inteira. “Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram, e Omolu que era um deus das florestas da África, não sabia destas coisas de vacina. “Então vinham os homens da Saúde Pública, metiam os doentes num saco, levavam para o lazareto distante.”
“Almiro foi o primeiro dos Capitães da Areia que caiu com alastrim.” Quando Barandão o procurou para fazerem amor, Almiro lhe mostrou o peito cheio de bolhas.
Barandão avisa ao grupo e todos se afastam temerosos. Com a ausência de Bala no momento, Sem-Pernas assume a liderança e determina que Almiro deixe o grupo e vá para a rua até que os agentes da saúde o levem. Almiro chorava e pedia para ficar; Barandão tremia; Pirulito clamava que era castigo de Deus por causa dos pecados deles e Sem-Pernas expulsava Almiro afirmando que não podiam chamar os “mata-cachorro” e a polícia descobrir seu endereço e nem correr risco dele espalhar a doença ao grupo.
Sem-Pernas que agora estava mais arredio e que só prezava a companhia de um cachorro que tinha adotado, gritava para Pirulito parar de rezar e batia em Almiro para ele saísse do trapiche. Volta-Seca armado intercede pelo amigo, dizendo que quem aproximasse de Almiro levaria bala e tinham obrigação de esperar Bala para decidir a situação.
Bala, o Professor e João Grande chegaram e assustaram ao ver Volta-Seca armado. Depois, de tomar ciência do caso, Bala opta por não entregá-lo à Assistência.
Pirulito volta acompanhado pelo padre José Pedro que defende levá-lo à Assistência, pois havia uma lei que obrigava os cidadãos a denunciarem à Saúde Pública os casos que soubessem de varíola, para o imediato recolhimento dos variolosos aos lazaretos.
Bala afirmava que se Almiro fosse levado ao lazareto, morreria. Então, que era preferível que morresse ali. O padre concordou com Sem-Pernas afirmando que a doença ia alastrar pelo grupo. Bala comprometeu-se a ir falar com a mãe de Almiro e encaminhá-lo para lá; e, o padre arranjaria um médico para cuidar dele.
A mão de Almiro era uma lavadeira amigada com um pequeno lavrador. A família de Almiro recebeu o seu filho de volta e o padre o visitou e como combinado, arrumou um médico. Mas, o médico estava preocupado em alcançar um cargo na Saúde Pública e denunciou o caso, Almiro foi encaminhado para o Lazareto e o padre ficou em maus lençóis como encobridor do caso que foi repreendido pelo Cônego Secretário do Arcebispado e chamado ao Palácio Episcopal.
O Cônego depois de questioná-lo, concluiu:
“ – Que Deus seja suficientemente bom para perdoar seus atos e suas palavras. O senhor tem ofendido a Deus e à Igreja. Tem desonrado as vestes sacerdotais que leva. Violou as leis da Igreja e do Estado. Tem agido como um comunista. Por isso nos vemos obrigados a não lhe dar tão cedo a paróquia que o senhor pediu. Vá (agora sua voz voltava a ser doce, mas de uma doçura cheia de resolução, uma doçura que não admitia réplicas), penitencie-se dos seus pecados, dedique-se aos fiéis da igreja em que trabalha e esqueça essas idéias comunistas, senão, teremos que tomar medidas mais sérias. [...] Um comunista...E Cristo? Não, não podia pensar que Cristo fosse um comunista...”
Boa-Vida espiou o seu braço e constatou que era a doença da bexiga. Lembrou-se de Almiro e da discussão que houve no trapiche. E, depois com a notícia do falecimento do amigo, arrumou a sua trouxa para partir.
O Professor que ainda estava acordado perguntou-lhe para onde ia. O menino respondeu-lhe que partia para o Lazareto que não queria passar a doença para os outros e pedia para o Professor comunicar somente ao Pedro Bala. Na saída, “Boa-Vida olhou a cidade, fez um gesto com a mão. Era como um adeus. Boa-Vida era malandro e ninguém ama sua cidade como os malandros. Olhou o professor: - Quando tu fizer meu retrato...Tua ainda vai fazer? [...] Não me faz cheio de bexiga, não...”
Nas macumbas em honra a Omolu, o povo negro, castigado com a bexiga pedia que ele levasse a bexiga da cidade, levasse para os ricos latifundiários do sertão. “E numa noite que os atabaques batiam nas macumbas, numa noite de mistério da Bahia, Omolu pulou na máquina da Leste Brasileira e foi para o sertão de Juazeiro. A bexiga foi com ele.”
Vida-Boa retornou magro com a mão descarnada, o rosto ossudo e cheio de picada na cara. Disse que o lazareto era “uma nojeira. A gente quando entra é igual um que entra no caixão...”
Professor olhou o peito de Boa-Vida e no lugar do coração viu uma estrela.

DESTINO

No bar Porta do Mar, os Capitães, João de Adão e os frequentadores do bar discutiam sobre o destino; uns acreditavam que “ninguém pode mudar o destino. É coisa feita lá em cima”; outros como João de Adão e Bala, defendiam que “um dia a gente muda”.

PARTE II: NOITE DA GRANDE PAZ, DA GRANDE PAZ DOS TEUS OLHOS

FILHA DE BEXIGUENTO

A música vinha dos morros e eram vendidas aos sambistas célebres da cidade. Durante o alastrim, até o violão calou-se para dar lugar ao choro e lamentações. No lugar dos sambistas alegres, desfilavam caixões negros de adultos, caixões brancos de virgens e caixões pequenos de crianças. Isso quando não eram sacos que desciam com os variolosos quase mortos que eram levados para o Lazareto.
Em um desses sacos foi levado Estevão e que nunca mais voltou. Sua esposa, Margarida quando recebeu a notícia da morte do marido, já sentia febre alta. Mas, foi forte e escondeu os sintomas de todos. Seus dois filhos: Zé Fuinha, seis anos de idade e Dora, treze para quatorze cuidavam da mãe e dos afazeres domésticos.
Quando a música voltou aos morros e a epidemia voltou embora, Margarida melhorou. Trabalhou o dia inteiro, mas no dia seguinte teve uma recaída e o seu caixão desceu dois dias depois. Zé Fuinha chorava de dor e de fome e Dora pensava como seria a vida deles sem ninguém na imensidão da cidade.
Nesta tarde, os vizinhos deram jantar aos órfãos. No dia seguinte, o árabe dono do barraco mandou derramar álcool no recinto para desinfetar. Dora sem se despedir, pegou Zé Fuinha e desceram para a cidade. Tinha esperanças de conseguir uma colocação com copeira numa casa e arrumar alguém para tomar conta de seu irmão.
Sua mãe era lavava roupas de uma senhora rica da Barra. Uma vez Dora acompanhou a sua mãe até lá e a dona da casa perguntara se ela queria trabalhar ali. Era para lá que Dora caminhava. A caminhada era grande, o sol no asfalto queimava seus pés descalços e Zé Fuinha reclamava de fome. Dora comprou dois pães adormecidos e deu ao irmão, deixando-o sentado numa praça e seguiu até o endereço da senhora.
O 611 era uma casa grande, no jardim um rapaz de 17 anos balançava uma garota da idade de Dora. Dora tocou a campainha por duas vezes, e enquanto a empregada desconfiada foi chamar dona Laura, o rapaz deixou de balançar a irmã e “não despregava os olhos dos seios de Dora. Era bonita a menina, de olhos grandes, cabelo muito loiro, neta de italiano com uma mulata. [...] O vento levantou um pouco o vestido dela. Ele teve pensamentos canalhas ao ver o pedaço de coxa. Já se sonhava na cama, Dora trazendo o café pela manhã, a safadeza que se seguiria.”
Dona Laura apareceu e ao saber o motivo da visita questiona a menina qual foi à causa da morte de Margarida. Quando Dora respondeu que fora de varíola, a menina se afastou receosa, o rapaz pensou nos seios de Dora marcados de bexiga e Dona Laura com um tom triste respondeu-lhe que já havia contratado outra empregada.
Em seguida, deu-lhe dois mil-réis e mandou a empregada passar álcool por onde a menina passou.
Dora procurou emprego a tarde toda, mas o medo da varíola era maior que qualquer bondade.
Quando as luzes da cidade acenderam, Dora adorou, mas depois sentiu que a cidade era sua inimiga. Comprou alguns pães e sentou-se com seu irmão num banco de jardim que observava um jogo de gude entre um menino negro e forte (João Grande) e, outro magrelo e branco (Professor). Dora dividiu seu pão, suas preocupações e medos com esses garotos. Contou-lhes sobre seu trágico dia e confessou-lhes que ninguém quer contratar filha de bexiguento. Os garotos vendo-a chorar e sem ter para onde ir, decidiram levá-los para o trapiche.
“No areal Zé Fuinha não pode mais ir andando. O negro João Grande pegou a criança (apesar de ser também criança...) e a botou nas costas. Professor ia junto de Dora, mas estavam calados na noite.”
O grupo entrou no trapiche e foi recebido com muita surpresa pelos Capitães. Gato tentou uma saudação que tinha visto no cinema e retirou-se para encontrar com a Dalva; Boa-Vida, Volta-Seca e Sem-Pernas queriam a menina para eles. João Grande e o Professor tiveram que defender a menina com punhal e navalha e a briga só cessou ao ouvirem a voz de Pedro Bala.
Bala ouviu a explicação de Boa-Vida: “estes frescos arranjaram uma comida e quer que seja para eles só. A gente também tem direito....” e concordou com ele.
João Grande olhou Pedro Bala espantado. “O grupo avançava novamente, agora chefiado por Pedro Bala. João Grande estendeu os braços, gritou:
- Bala, eu como o primeiro que chegar aqui. [...] Eu sempre tive contigo, Bala. Sou teu amigo, mas ela é uma menina, fui eu e Professor que trouxe ela. Eu sou teu amigo, mas se tu vier eu te mato. É uma menina, ninguém faz mal a ela.. O pai dela, a mãe dela morreu de bexiga. A gente encontrou ela, não tinha onde dormir, a gente trouxe ela. Não é uma puta, é uma menina, não vê que é uma menina? Ninguém toca nela, Bala.”
Bala ordenou que afastassem dela e recebeu críticas do Boa-Vida que afirmava que ele queria dividi-la com o Grande e o Professor. Bala então desafia quem era contra suas ordens.
Dora sentindo-se mais tranquila saiu do seu canto e foi curar a ferida do Professor e depois, do Boa-Vida. “Todo o temor, todo o cansaço tinham desaparecido. Porque confiava em Pedro Bala.”
Bala diz que a menina partirá amanhã e Dora implora para ficar: “ – Eu fico, ajudo vocês...Eu sei cozinhar, coser, lavar roupa. [...] Pedro bala olhou os cabelos loiros. A lua entrava pelo trapiche”
DORA, MÃE

Dora após colocar Zé Fuinha para dormir, sentou-se ao lado do Professor para ouvir a história que ele estava lendo. Gato aproxima-se de Dora totalmente desajeitado e pede-lhe que ela enfie a linha numa agulha. Dora fez o favor e perguntou o que é que o Gato tinha que coser. Gato mostrou o paletó e Dora costurou o bolso, depois a camisa que estava rasgada de cima e baixo. Quando os dedos de Dora tocaram as costas de Gato, ele sentiu um arrepio. Com quando Dalva passava as unhas crescidas e tratadas arranhando suas costas para excitá-lo. Mas, as unhas de Dora, maltratadas, sujas e roídas não eram para arrepiar e nem excitar. “Passava como a mão de uma mãe que remendava camisas do filho. [...] É aquela sensação de carinho bom, de segurança que lhe davam as mãos de sua mãe. Dora está por detrás dele, ele não vê. Imagina então que é sua mãe que voltou.”
Naquele momento Gato deixou de ser o ladrão de carteiras, o jogador de baralho de cartas marcadas e o amante de Dalva para ser apenas um garoto de quatorze anos “com uma mãezinha que remenda as suas camisas.”
“Gato joga o paletó nas costas e sai com seu passo gingado. Sente que há qualquer coisa de novo no trapiche: eles encontraram mãe, carinho e cuidados de mãe.”
Num canto o Professor lia em voz alta uma história de uma noite chuvosa e da revolta de alguns marinheiros contra o capitão do navio que os torturava para João Grande, Dora e depois, Volta Seca que chegou trazendo um jornal. O grupo vibrou com a vitória dos marinheiros e deram muitas gargalhadas.
Volta Seca queria que o Professor lesse notícias de seu padrinho Lampião no jornal. Depois, Volta Seca começa a descrever a beleza e a valentia da sua mãe e olhando para Dora, disse: “ – Parece mentira, mas tu me lembra ela.” O Professor naquele momento, concluiu que Volta Seca também tinha descoberto uma mãe em Dora.
As notícias que o jornal trazia não eram boas para Volta Seca: “Lampião fora pegado de surpresa ao entrar numa vila. O chofer de um caminhão que o vira na estrada com o grupo tocara para a vila e avisara. Dera tempo de pedirem reforços de vilas próximas e coluna volante também veio. Quando Lampião entrou na vila encontrou foi bala muita pela frente, bala que ele não esperava (...) só pode mesmo abrir para a caatinga, que é sua casa. Um dos homens do grupo ficou estirado com um balaço no peito. Cortaram a cabeça dele, que foi enviada para a Bahia em triunfo.”
Volta Seca enfurecido amaldiçoou o chofer, ameaçando-o. Volta Seca concluiu que estava na hora de estar ao lado do seu padrinho. Dora, demonstrando uma preocupação materna lhe pergunta: “ – E se a polícia te matar, cortar tua cabeça?”
“Professor apertou os olhos e viu também, em lugar de Dora, uma sertaneja forte, defendendo seu pedaço de terra contra os coronéis, com a ajuda amiga dos cangaceiros. Viu a mãe de Volta Seca. E era o que o mulato via.”
Pirulito, por sua vez, via em Dora a materialização de seu pecado. E “tinha medo da tentação que vinha dentro dele [...] e procurava rezar em voz baixa enquanto ela se aproximava”.
Até que um dia, Dora aproximou-se do canto de Pirulito e fixou a admirar os seus quadros religiosos. “O medo começou a desaparecer do coração do Pirulito. Ela se interessava pelos seus santos, santos para os quais ninguém ligava no trapiche.”
Pirulito contava os milagres de santos, mostrava os quadros, o catecismo, o terço e falava sobre a bondade do padre José Pedro, “naquele momento lhe veio uma vontade de contar a ela que queria ser sacerdote, que queria seguir aquela vocação, que sentia o chamado de Deus. Só à sua mãe teria coragem de contar isso. E ela está na sua frente. Ele fala: - Tu sabe que eu quero ser padre? Tu pensa que eu mereço? Deus é bom, mas também sabe castigar...Tu não vê que a vida da gente é cheia de pecado?Tu quer esse Deus Menino pra tu?”
Dora aceitou e o Professor viu a mãe de Pirulito que ele não conhecera ali no lugar de Dora e sentiu inveja da felicidade de Pirulito.
O Professor e Dora encontraram Bala estendido na areia. O casal aproximou-se do Capitão e ele evitava encará-la e disse que era melhor que ela fosse embora.
Dora disse voltada para ele:
“ – Tu ontem foi bom comigo e meu irmão...”
O Professor insistia em defesa de Dora, alegando que ela era como uma mãe. Mas, para Bala, ela era tudo: esposa, irmã e mãe. Para o Professor, Dora também, já era a sua amada.


DORA, IRMÃ E NOIVA

Aos poucos Dora foi se transformando em uma dos Capitães: passou a vestir-se como um menino e começou a andar pelas ruas, “batendo coisas”.
Andava sempre com Bala, o Professor e João Grande. O Professor “com um olhar de carinho dos olhos da Dora. Mas não daquele carinho maternal que ela tinha para os menores e para os mais tristes, Volta Seca, Pirulito. Tampouco um olhar fraternal, como os que ela lançava a João Grande, a Sem-Pernas, a Gato, a ele mesmo. Queria um daqueles olhares plenos de amor que ela lançava a Pedro Bala...”
Bala foi acompanhar Dora e Zé Fuinha até o pé da ladeira do Taboão para que eles voltassem em segurança para o trapiche e enquanto voltava, pensava em Dora; nos cabelos dourados e em seu olhar. “Era bonita, era igual a uma noiva.” Depois, tratou que eliminar esse pensamento; afinal, ele como chefe dos Capitães tinha que manter a ordem.
No caminho esbarrou-se com Ezequiel, chefe de um grupo adversário e mais três meninos, sendo um deles, um ex-Capitão.
Ezequiel provoca-o perguntando se era verdade que agora mantinham uma putinha entre eles para todo mundo usufruir. Bala parte para a briga e acabou se machucando.
Quando Bala machucado entrou no trapiche, Dora foi recebê-lo e tratou de suas feridas.
“Agora limpava os lábios dele, estava curvada na sua frente, seu rosto bem próximo do de Bala, os cabelos loiros misturados com os dele. [...] Então ela chegou os lábios para junto dos de Pedro Bala, os beijou e depois fugiu.”
Bala tenta alcançá-la e Dora lança-lhe um olhar diferente, um olhar de noiva.
Bala se deitou na areia e mesmo de olhos fechados via Dora.
“Sentiu quando ela chegou e deitou a seu lado. Disse:
- Tu agora é minha noiva. Um dia a gente se casa.
Continuou de olhos fechados. Ela disse baixinho:
- Tu é meu noivo.”
À noite, o grupo se reuniu e elaboraram um plano de vingança contra Ezequiel. Pelo meio da noite saíram uns trinta em busca do grupo de Ezequiel. Dora os acompanhou levando uma navalha. Ninguém sabia o segredo do noivado travado entre Bala e Dora, nem o Professor que, também a tinha como sua noiva. Vingaram-se e saíram vitoriosos, embora Sem-Pernas ter um talho e Barandão vir carregado depois de tantas pancadas. “Falavam na coragem de Dora, que brigara igual a um menino.” Bala se estendeu na areia, Dora deitou-se ao seu lado e dormiram de mãos dadas como dois irmãos.

REFORMATÓRIO

“O Jornal da Tarde trouxe a notícia em grandes títulos. Uma manchete ia de lado a lado na primeira página: PRESO O CHEFE DOS “CAPITÃES DA AREIA”.
“Uma menina no grupo – a sua história – recolhida a um orfanato – o chefe dos “Capitães da Areia” é filho de um grevista – os outros conseguem fugir – “O Reformatório o endireitará”, nos afirma o Diretor.”
O repórter exaltava o empenho do Jornal que há muito vinha denunciando o problema desses menores que viviam nas ruas da cidade dedicados ao furto. Mas, graças à astúcia do filho do dr. Alcebíades Menezes que percebeu a invasão dos Capitães em seu palacete e esperou que eles penetrassem num quarto, onde os trancou, a polícia pode prende-los.
Quando a reportagem do “Jornal da Tarde” chegou ao local, o grupo estava sendo conduzido à Chefia de Polícia. “Pedimos então para tirar um retrato do grupo. [...] Pedro Bala pondo em prática uma agilidade incomum se livrou dos braços do investigador que o segurava e com um golpe de capoeira o derrubou.” Enquanto outros guardas tentam agarrá-lo, Bala ordena que o grupo fuja. Na Chefia de Polícia Bala negou dar informações sobre os companheiros e só informou seu nome e declarou que era filho de um grevista que foi morto num “meeting” na greve das docas. Quanto a Dora, era filha de uma lavadeira que morreu contaminada pela varíola e que estava no grupo há quatro meses.
“Dora declarou à nossa reportagem que era noiva de Pedro Bala e que iam se casar. É uma menina ainda ingênua, mais digna de piedade que de castigo. [...] Foi levada ao Orfanato Nossa Senhora da Piedade. Neste santo ambiente não tardará a esquecer Pedro Bala, o romântico noivo-bandido, e a sua vida criminosa entre os “Capitães da Areia”.
“Quanto a Pedro Bala, será recolhido ao Reformatório de Menores logo que a polícia consiga que ele declare qual o local onde se esconde o grupo.”
Professor, à noite, leu a notícia para todos e decidiram que o Sem-Pernas substituiria a liderança até Bala voltar.
Levaram Bala a uma sala onde estavam presentes dois soldados de polícia, um investigador e o diretor do reformatório e começaram a torturá-lo. Bala pensou na segurança dos companheiros e o orgulho encheu seu peito: nunca trairia seus amigos, fugiria dali, libertaria Dora e se vingaria...
“Grita de dor. Mas não sai uma palavra dos seus lábios. Vai se fazendo noite para ele. Agora já não sente dores, já não sente nada. No entanto, os soldados ainda o surram, o investigador o soqueia.”
Na madrugada, quando Pedro acordou, os presos cantavam uma música que falava em quanto é grande e bela a liberdade. Quando o bedel Ranulfo foi buscá-lo para levá-lo à presença do diretor, Bala lembrava-se da canção que os presos cantavam e das palavras de João de Adão que um dia explicou-lhe que aquelas greves nas docas não eram só por salários, era pela liberdade que o pai dele morreu.
O diretor manda-o para o cafua só com água e feijão. O cafua “era um pequeno quarto, por baixo da escada, onde não se podia estar em pé, porque não havia altura, nem tampouco estar deitado ao comprido, porque não havia comprimento. [...] Era totalmente cerrado o quarto, a escuridão era completa. O ar entrava pelas frestas finas e raras dos degraus da escada.”
Bala estava muito machucado e sentia muitas dores. Pensava em Dora e lembrava-se que ela também estava sem liberdade. Antes de Dora aparecer no trapiche, Bala gostava de derrubar negrinhas no areal. Ele nunca tivera uma idéia perfeita do amor, mas agora, ele estava noivo e precisava elaborar um plano para livrar Dora do orfanato.
“É verdade que Dora é a mais valente de quantas mulheres já nasceram na Bahia, que é a terra das mulheres valentes. Mais valente mesmo que Rosa Palmeirão, que deu em seis soldados, que Maria Cabaçu, que não respeitava cara, que a companheira de Lampião, que maneja um fuzil igual a um cangaceiro.”
Bala começa a delirar...”Vê a cara malvada do diretor. Enterrará seu punhal até o mais fundo do coração do diretor. [...] Volta Seca quer ir para o bando de Lampião, que é seu padrinho. Lampião mata soldado, mata homem ruim. Pedro Bala neste momento ama Lampião como a um seu herói, a um seu vingador. É o braço armado dos pobres no sertão. Um dia ele poderá ser do grupo de Lampião também. E quem sabe se não poderiam invadir a cidade da Bahia, abrir a cabeça do diretor do reformatório.”
Bala sofre de sede e o bedel traz somente um caneco com água e um prato de barro com uma água onde bóiam alguns caroços de feijão. Bala pede mais água e o bedel responde-lhe que só amanhã trará. Sem alternativa, Bala toma a água escura do feijão que estava muito salgada intensificando a sua sede.
Bala escuta alguém bater na escada. Um rapaz informa-lhe que os Capitães iram tirá-lo de lá e oferece-lhe um cigarro. O bedel escuta e dá um soco no rapaz que tentava contato com Bala.
Bala perdeu a noção das horas, dos dias e sente-se muito fraco. “O barril onde defeca exala um cheiro horrível. Não o retiraram ainda. E sua barriga dói, sofre horrores para defecar. É como se as tripas fossem sair. As pernas não o ajudam. O que o mantém em pé é o ódio que enche seu coração.”
Bala depois de dias é levado à presença novamente do diretor. Raspam-lhe seus cabelos, entregam-lhe um facão e o levam a um canavial, onde outros meninos trabalham. À noite, exausto recolhe-se num dormitório do terceiro andar. O menino dos recados apresenta-se a Bala. O sono dos meninos é interrompido com a chegada do bedel querendo saber quem eram os pederastas.
“No extremo do canavial passa um bilhete a Sem-Pernas. No outro dia encontra a corda entre as moitas de cana. [...] No meio dela o punhal que Pedro mete nas calças.”
Bala aproveitou uma briga entre Jeremias e o bedel Fausto e correu até o dormitório esconder a corda para baixo do colchão. Na confusão Agostinho tentou fugir e foi recapturado. Jeremias e Agostinho foram colocados no cafua.
Duas noites depois, Professor lê a manchete do Jornal da Tarde: “O chefe dos “Capitães da Areia” consegue fugir do reformatório”.

ORFANATO

“Um mês de orfanato bastou para matar a alegria e a saúde de Dora.” A menina tinha febre constante, mas não dizia nada. Às vezes via o Professor ou João Grande rondando por ali. Um dia avisaram por intermédio de um bilhete, que o Pedro Bala fugira do reformatório que iria tirá-la dali e orientava- a para ir para a enfermaria.
Na enfermaria, estava Bala, o Professor, João Grande, Gato e Volta Seca que ameaçavam uma irmã com um punhal.
“Se atiraram por uma ladeira. Dora nem sentia a febre porque ia junto com Pedro Bala, ele pegando na sua mão.”

DORA, ESPOSA



Dentro do trapiche estão apreensivos. Dora pede que não se preocupem e que podem dormir. Em seguida, chamou Bala para próximo dela, contou-lhe que era moça e disse-lhe que quer se entregar a ele. Colocou a mão de Bala em seus seios e pediu que ele a acaricie.
“Ele a olha espantado:
- Não, que tu tá doente...
- Antes de eu morrer. Vem...
Se abraçam. O desejo é abrupto e terrível. Pedro não a quer magoar, mas ela não mostra sinais de dor. Uma grande paz em todo seu ser.
(...)
- É bom...Sou tua mulher.
A paz da noite envolve os esposos.”
Na madrugada, Pedro colocou a mão na testa de Dora e descobriu que ela estava morta. Gritou acordando todos do trapiche. “Professor se chega, fica olhando. Não tem coragem de tocar no corpo dela. Mas sente que para ele a vida do trapiche acabou, não lhe resta mais que fazer ali. Pirulito entra com o padre José Pedro. [...] Inicia uma oração. E quase todos rezam em voz alta.”
Veio a mãe-de-santo Don’Aninha, veio também o Querido-de-Deus.
“Aninha diz:
- Foi como uma sombra nesta vida. Vira santa na outra. Zumbi dos Palmares é santo dos candomblés de caboclo, Rosa Palmeirão também. Os homens e as mulheres valentes viram santo dos negros...
(...)
Padre José Pedro fala:
- Vai pro céu, não tinha pecado. Não sabia o que era pecado...”
Decidem envolver o corpo de Dora numa toalha branca e o Querido-de-Deus leva seu cadáver no seu saveiro e joga-o ao mar. Don’Aninha retira Bala que estava abraçado com o cadáver e diz:
Hopper

“ – Vai para Yemanjá. Ela também vira santo...Levam-na para a paz da noite, para o mistério do mar. O padre reza, é uma estranha procissão que se dirige na noite para o saveiro do Querido-de-Deus. Do areal, Pedro Bala vê o saveiro se perde no mar. A lua ilumina o areal, as estrelas tanto estão no céu como no mar. Há uma paz na noite. Paz que veio dos olhos de Dora.”

COMO UMA ESTRELA DE LOIRA CABELEIRA

Pedro Bala se jogou n’água e quis acompanhá-la e reunir-se a ela nas Terras do Sem Fim de Yemanjá. “Nada para diante sempre. Segue a rota do saveiro do Querido-de-Deus. Nada, nada sempre. Vê Dora em sua frente, Dora, sua esposa, os braços estendidos para ele. Nada até já não ter forças. Bóia então, os olhos voltados para as estrelas e a grande lua amarela do céu. Que importa morrer quando se vai em busca da amada, quando o amor nos espera? Que importa tampouco que os astrônomos afirmem que foi um cometa que passou sobre a Bahia naquela noite? O que Pedro Bala viu Dora feita estrela, indo para o céu. [...] Por isso virou uma estrela no céu. Uma estrela de longa cabeleira loira, uma estrela como nunca tivera nenhuma noite de paz da Bahia.
A felicidade ilumina o rosto de Pedro Bala. Para ele veio também a paz da noite. Porque agora sabe que ela brilhará para ele entre mil estrelas no céu sem igual da cidade negra. O saveiro do Querido-de-Deus o recolhe.”

PARTE III: CANÇÃO DA BAHIA, CANÇÃO DA LIBERDADE

VOCAÇÕES

Depois da morte de Dora o trapiche nunca mais foi o mesmo. Alguns, quando entravam a procuravam no canto que sempre ficava. Para o Professor o trapiche agora era uma moldura sem quadro. Só Bala a procurava ver no céu entre as estrelas.
O Professor entrou em contato com o homem da piteira, o Sr. Dantas e ele o encaminhou ao Rio para estudar desenho. Professor estava arrumando as suas coisas quando Bala chegou e comunicou a sua partida: “ – Que adianta a vida da gente? Só pancada na polícia quando pegam a gente. Todo mundo diz que um dia pode mudar...Padre José Pedro, João de Adão, tu mesmo. Agora vou mudar a minha. [...] Um dia vou mostrar como é a vida da gente...Faço o retrato de todo mundo...Tu falou uma vez, lembra? Pois faço...”
Bala disse ao Professor que ele através dos seus quadros ajudaria a mudar a vida deles.
Na despedida, o Professor vê que o trapiche não era como um quadro sem moldura, mas era como a moldura de inúmeros quadros: como quadros de uma fita de cinema; vidas de luta e de coragem e de miséria também.
O homem da piteira era um poeta, entrega-lhe uma carta, dinheiro e pede para ele não o decepcione.
Na estação os Capitães despediam do Professor que sentia que “toda a sua coragem ficou com os Capitães da Areia. Mas dentro do seu peito vem uma marca de amor à liberdade. Marca que o faria abandonar o velho pintor que lhe ensina coisas acadêmicas para ir pintar por sua conta quadros que, antes de admirar, espantam todo o país.”
Passado um ano, Pirulito deixou o mundo do crime e agora vendia jornais, trabalhava como engraxate e carregava bagagens dos viajantes, mas continua morando no trapiche.
“Pirulito está marcado por Deus. Mas está marcado também pela vida dos Capitães da Areia. Desiste da sua liberdade, de ver e ouvir o espetáculo do mundo, da marca de aventura dos Capitães da Areia, para ouvir o chamado de Deus. Porque a voz de Deus que fala no seu coração é tão poderosa que não tem comparação. Rezará pelos Capitães da Areia na sua cela de penitente. Porque tem que ouvir e seguir a voz que o chama.”
O padre José Pedro foi chamado novamente ao arcebispado. Desta vez o Cônego estava acompanhado pelo superior dos Capuchinhos. Desta vez o padre não é repreendido e o arcebispado anuncia que resolveu lhe dar uma paróquia. A paróquia ficava numa vila do alto sertão no meio dos cangaceiros. O padre ficou empolgadíssimo, pois “ia para o meio dos cangaceiros. E os cangaceiros são como crianças grandes.”
O Cônego pergunta-lhe sobre a vocação clerical de Pirulito e diz que estavam precisando de um irmão. “Não é o mesmo que ser padre, bem sei. Mas está muito próximo. E se a sua vocação é verdadeira a ordem pode fazê-lo estudar e mesmo se ordenar.”
Na estação, quando alguns Capitães despedem do padre, Pirulito chega vestido com uma batina de frade, um longo cordão pendendo ao lado. O padre pergunta aos Capitães se conheciam o irmão Francisco, da Sagrada Família. Eles olham Pirulito com certa vergonha. Mas Pirulito sorri e o Padre parte chorando.
Di Cavalcanti
Boa Vida está cada vez mais ausente do trapiche. Tornou-se um verdadeiro malandro nas ruas da Bahia. “Tem violão, faz sambas, (...) passa o dia conversando nas docas, no mercado, vai às festas dos morros e da Cidade de Palha à noite, ou às macumbas. Toca seu violão, come e bebe do melhor, apaixona as caboclas bonitas com sua voz e sua música. Arma fuzuê nas festas e quando a polícia o persegue vem se esconder no trapiche entre os Capitães da Areia.”
Um dia Bala e Sem-Pernas caminhando pelas ruas resolvem entrar numa igreja e vêem Pirulito dando aula de catecismo a um grupo de crianças pobres. Bala afirma que isso nada adiantava: que a bondade não bastava - só o ódio.
Em seguida diz a Sem-Pernas: “ – Nem o ódio, nem a bondade. Só a luta.”

CANÇÃO DE AMOR DA VITALINA

Gato comunicou ao grupo que, descobrira uma casa de uma solteirona rica. Comentavam que tinha uma sala cheia de objetos de ouro e que Gonzáles, o dono da casa de penhor dava dinheiro por aqueles objetos. Decidiram enviar o Sem-Pernas no dia seguinte para lá.
Sem-Pernas aplicou o velho golpe de menino órfão e carente. A solteirona olhou-o não com olhos de bondade, mas olhos de desejo sexual. “Dentro em pouco seu sexo ficaria inútil, os médicos diziam que então o seu nervoso cessaria. Muito antes, quando ainda era mocinha, houvera um menino na casa para fazer compras. Fora bom...Mas seu irmão descobrira, expulsara o menino. Agora o irmão estava morto, outro menino vinha pedir para fazer compras.”
No primeiro dia Sem-Pernas conseguiu bater mil e duzentos nas contas. Na cozinha a negra contava histórias e o menino fingia interesse só para conquistar sua confiança. A solteirona chamou à sala e curvou-se propositalmente para que seus seios ficassem à vista do menino. Sem-Pernas desviou o olhar, não pensava que fosse de propósito.
O menino dormia num colchão na sala de jantar quando “sentiu uma mão que passava em seus cabelos. Pensou que fosse um sonho bom. A mão deslizava, passava no seu peito, na sua barriga, agora segurava de manso no seu sexo. Sem-Pernas despertou completamente, mas ficou de olhos fechados. A solteirona machucava seu sexo, se encostava contra ele. Estava de camisa de dormir, suspendeu a camisa, botou a mão de Sem-Pernas no seu corpo, Sem-Pernas se encostou nela.. [...] Se apertava contra ele. Puxou as calças do Sem-Pernas. Depois se cobriram com o lençol. Mas quando Sem-Pernas quis tudo, ela disse: - Não. Só em cima. Era uma coisa incompleta que enraivecia Sem-Pernas. A solteirona gemia baixinho de amor. “
Agora todas as noites são como batalhas sexuais, mas nenhuma de satisfação total. A solteirona contentava-se com as migalhas de amor, enquanto que Sem-Pernas quer fazer o amor completo e aquilo faz crescer o seu ódio.
“Durante o dia responde mal a Joana, diz brutalidades, a solteiro chora. Ele a chama de vitalina, diz que vai embora. Ela lhe dá dinheiro, pede que ele fique. Mas não é pelo dinheiro que ele fica. Fica porque o desejo o retém. Já sabe qual a chave que abre a sala onde Joana guarda seus objetos de ouro. Sabe como tirar a chave para levá-la aos Capitães da Areia. Mas o desejo o retém ali, junto dos seios e das coxas da vitalina. Junto da mão da vitalina.”
Sem-Pernas sempre teve dificuldades em arrumar uma mulher, possuía as negrinhas a pulso, agora tinha uma mulher branca e rica, certo que era feia e velha, que o desejava.
No dia seguinte, Sem-Pernas efetua o roubo. A solteirona sofre e “pensa que Sem-Pernas só a amou nas noites longas de vícios para a furtar. (...) É como se houvessem cuspido na sua cara, dizendo que era por causa da sua feiúra.”
No trapiche, Sem-Pernas ria, relatando sua aventura, mas “agora um desejo insatisfeito enche suas noites. Um desejo que impede seu sono, que lhe dá raiva.”

NA RABADA DE UM TREM

A notícia da alta do cacau e dos ricos coronéis de Ilhéus atraiu muitas prostitutas para a cidade. “Vieram mulheres para o Batachan, mulheres para o El-Dorado, mulher para o Far-West. Umas poucas vieram para o Trianon, onde dançavam com os coronéis (...) ganhavam jóias. Por vezes ganhavam um tiro também...”
Dalva decidiu partir para lá e Gato que já estava com ela há quatro anos ia acompanhá-la.
Gato dirigiu-se a Bala e disse:
“ – Mano, vou para Ilhéus. A patroa vai cavar a vida. Eu vou com ela. Sou capaz de enricar. Quando tiver fazendeiro a gente vai fazer uma farra daquelas.”.
Bala reflete que mais um deles partia. “Quando outras crianças só se preocupavam com brincar, estudar para aprender a ler, eles se viam envolvidos em acontecimentos que só os homens sabiam resolver. Sempre tinham sido como homens, na sua vida de miséria e de aventura, nunca tinham sido perfeitamente crianças.”
Volta Seca foi detido porque furtou uma carteira, depois de oito dias na cadeia, foi libertado. Agora ele tinha uma missão na vida: “matar soldados de polícia. [...] O sertão o chamava, a luta do cangaço o chamava. Um dia disse a Pedro Bala: - Vou passar uns tempos com os Maloqueiros em Aracaju.”
Os índios Maloqueiros eram os Capitães da Areia em Aracaju. Volta Seca aprendeu muita coisa na cidade, entre os Capitães, mas ele era do sertão e estes anos na cidade não tinham arrancado seu amor pelo sertão miserável e belo. “Aprendeu que as crianças pobres são desgraçadas em toda parte, que os ricos perseguem e mandam em toda parte. [...] Se já pensava que Lampião era um herói, a sua experiência na cidade, o ódio adquirido na cidade, fez com que amasse a figura de seu padrinho acima de tudo.”
Agora Volta Seca partia para o sertão numa rabada de trem. No meio da caatinga, o trem para. “Os cangaceiros apontam os fuzis [...] era o Capitão Virgulino.”
Volta Seca pula fora do vagão e pensa que seu coração vai estalar de alegria. Encontrou seu padrinho, Virgulino Ferreira Lampião, herói das crianças sertanejas. Volta Seca aproxima-se de Lampião, apresenta-se e pede ao padrinho que o integre ao grupo. Lampião o reconhece e entrega-lhe um fuzil.
O grupo prende dois soldados de polícia que viajavam no trem. Lampião divide dinheiro com os cangaceiros, inclusive com Volta Seca e quando Zé Baiano vai executar os dois policiais, Volta Seca pede para deixá-lo praticar o crime.

“ – Deixe para mim, padrim. Eles me bateram na polícia, bateram em muito menino.”
Volta Seca atira nos dois policias e mata-os. Em seguida, apunhala-os e com o mesmo punhal faz dois traços na madeira do fuzil. “Os dois primeiros...”
“Zé Baiano diz:
- Este menino é dos bons...
- A mãe dele era um bicho, minha comadre... – lembra Lampião orgulhoso.”

COMO UM TRAPEZISTA DE CIRCO

Pedro Bala, João Grande e Sem-Pernas assaltaram uma casa na Rua Rui Barbosa. Já bem crescidos e necessitados de aventuras não se importaram com o perigo. Havia muita gente na casa, o alarme disparou e os guardas chegaram.
Bala e Grande conseguem fugir, mas Sem-Pernas é perseguido pela polícia. “Eram homens, de pernas maiores que as suas, e além do mais ele era coxo, pouco podia correr. E acima de tudo não queria que o pegassem. Lembrava-se da vez que fora à polícia. [...] Não deixará que o peguem, não tocarão a mão no seu corpo. Sem-Pernas os odeia como odeia a todo mundo, porque nunca pode ter um carinho. Nunca conseguira amar a ninguém, a não ser a este cachorro que o segue. (...) Uma vez uma mulher foi boa para ele. Mas em verdade não o fora para ele e sim para o filho que perdera e que pensava que tinha voltado. De outra feita outra mulher se deitara com ele numa cama, acariciara seu sexo, se aproveitara dele para colher as migalhas do amor que nunca tivera.”
Os policiais continuam perseguindo e acreditam que o menino parará junto ao grande elevador. “Mas Sem-Pernas não para. Sobre para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo. (...) O cachorro late entre as grades do muro.”

Um jornal do Rio de Janeiro publica uma crítica de arte sobre a exposição de um jovem pintor até então desconhecido.
“...um detalhe notaram todos que foram a esta estranha exposição de cenas e retratos de meninos pobres. É que todos os sentimentos bons estão sempre representados na figura de uma menina magra de cabelos loiros e faces febris. E que todos os sentimentos maus estão representados por um homem de sobretudo negro e um ar de viajante. Que representará para um psicanalista a repetição quase inconsciente destas figuras em todos os quadros? Sabe-se que o pintor João José tem uma história...”
Meses depois, o Jornal da Tarde publica uma notícia relatando a prisão de um jovem vigarista que atuava em Ilhéus com o nome de Gato e vendia terras afirmando que eram ótimas para o cultivo do cacau, a muitos fazendeiros. Quando estes foram ver as suas propriedades, não eram mais que o leito sobre o qual corria o rio Cachoeira.
Outro dia, o Jornal da Tarde publica que um malandro conhecido pelo nome de Boa-Vida abrira a cabeça de um homem com uma garrafa de cerveja durante uma festa na Cidade de Palha e estava sendo procurado pela polícia.
Próximo ao Natal, os leitores do Jornal da Tarde foram surpreendidos com outra manchete chocantes: A manchete dizia em letras garrafais:
“Uma criança de 16 anos no grupo de Lampião. É um dos mais temíveis cangaceiros – trinta e cinco traços no seu fuzil – pertenceu aos “Capitães da Areia” – a morte de Machadão devida a Volta Seca.”
“Aconteceu que o grupo tinha pegado na estrada um velho sargento da polícia. E Lampião o entregara a Volta Seca para que o despachasse. Volta Seca o despachara devagarinho, à ponta de punhal, cortando os pedacinhos com visível satisfação. Fora tanta crueldade, que Machadão, horrorizado, levantou o fuzil para acabar com Volta Seca. Mas antes que disparasse, Lampião, que tinha um grande orgulho de Volta Seca, atirou em Machadão. Volta Seca continuara sua tarefa.“


Meses depois o Jornal da Tarde trazia a notícia da prisão de Volta Seca.
O júri condenou Volta Seca a 30 anos de prisão por 15 mortes conhecidas e provadas. No entanto, seu fuzil tinha 50 marcas.
Uns acreditavam que Volta Seca era um criminoso nato; grandes sociólogos e etnógrafos defendiam que Volta Seca era um tipo normal resultado de uma sociedade hipócrita, da desigualdade social e da ambientação que fora criado.
Mas, o público e até mesmo o juiz choraram quando o Promotor Público descreveu os sofrimento das vítimas do feroz cangaceiro-menino.

Durante o julgamento Volta Seca permaneceu com estranha calma e não derrubou nenhuma lágrima.

COMPANHEIROS

O cais estava vazio, somente alguns soldados da polícia guardavam os grandes armazéns. Os condutores de bondes entraram em greve e receberam o apoio dos estivadores. “Os grupos de grevistas passam silenciosos para a sede do sindicato, onde vão ouvir a leitura do manifesto dos estivadores, que João de Adão conduz nas suas mãos grandes.”
Bala, João Grande e Barandão vão até o sindicato e Bala tem vontade de se misturar com os grevistas e lutar ao lado deles.
No trapiche todos dormem. Bala estirado na areia, escuta uma canção triste sobre um negro que canta as saudades de sua mulata. Bala procura nos céu a sua estrela de longa cabeleira loira. “Só Bala se jogou n’água para seguir o destino de Dora...Por isso só ele viu quando ela virou estrela e cruzou os céus. Ela veio só para ele, com sua longa cabeleira loira. Brilhou sobre sua cabeça de quase afogado e suicida. Deu-lhe forças, o saveiro do Querido-de-Deus que voltava o pode recolher.”
Seus pensamentos são interrompidos com a chegada de João de Adão acompanhado por Alberto, um estudante da faculdade que vinha pedir aos Capitães que dissolvessem os grupos dos furadores de greve.
“Os diretores da Companhia andam contratando fura-greves para trabalhar amanhã. Se os operários dissolverem os grupos de furadores de greve, darão margem a que a polícia intervenha e está todo o trabalho perdido....Então o companheiro João de Adão lembrou de você. “
Explicou o plano: os furadores de greve viriam pela madrugada para os três grandes depósitos de bondes para tomar conta dos carros. Os Capitães da Areia deviam se dividir em três grupos, guardar as entradas dos três depósitos e impedir, fosse como fosse, que os furadores de greve conseguissem botar os bondes em marcha.
Bala acordou todos os Capitães e resumiu tudo nestas palavras:
“ – A greve é a festa dos pobres. Os pobres é tudo companheiro, companheiro da gente.”
Bala fica pensando na palavra companheiro....e conclui que é a palavra mais bonita que ouviu. Dora foi uma boa companheira e Bala pediria ao Boa-Vida fazer um samba com essa palavra.
Na madrugada saem armados e felizes caminham como se fossem a uma festa. “A primeira festa verdadeira que têm aquelas crianças. Ainda assim é uma festa de homens. Mas é uma festa dos pobres, dos pobres como eles.”

O grupo dos fura-greves era chefiado por um americano. O grupo dirige-se à entrada e são surpreendidos pelos Capitães. Fogem desesperados pensando tratar-se de demônios fugidos do inferno.
“A gargalhada livre e grande dos Capitães da Areia ressoa na madrugada. A greve não é furada.”

OS ATABAQUES RESSOAM COMO CLARINS DE GUERRA


Depois da greve Alberto sempre vinha visitar os companheiros no trapiche e Bala aprendia com o estudante, o que ninguém soubera lhe ensinar.
Uma tarde Bala encontra Gato pelas ruas. Ele estava elegantíssimo e contou-lhe que ganhou muito dinheiro em Ilhéus. Agora, partia para Aracaju, pois o açúcar estava dando dinheiro.
Diz que Dalva ficou lá amigada com um coronel, mas que ele já estava de caso com uma morena que viajaria com ele. Quando Bala perguntou pelo seu o anelão que Sem-Pernas fazia troça. Gato ri e disse que vendeu a um coronel cheio da nota por quinhentão...


“A revolução chama Pedro Bala como Deus chamava Pirulito nas noites do trapiche. (...) Como a voz de um negro que canta num saveiro o samba que Boa-Vida fez: Companheiros, chegou a hora...A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração. Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. (...) Voz que chama Pedro Bala, que o leva para a luta.”
Bala foi aceito na organização no mesmo dia em que João Grande embarcou como marinheiro num navio cargueiro do Lóide. Agora comanda uma brigada de choque formada pelos Capitães da Areia. Intervêm em comícios, em greves e em lutas obreiras.
“Ordens vieram para a organização dos mais altos dirigentes. Que Alberto ficasse com os Capitães da Areia e Pedro Bala fosse organizar os Índios Maloqueiros de Aracaju em brigada de choque também. E que depois continuasse a mudar o destino das outras crianças abandonadas do país. [...] Bala reúne a todos, bota Barandão junto de si: - Gentes, agora eu vou embora, vou deixar vocês. Vou embora, Barandão agora fica o chefe. Alberto vem sempre ver vocês, vocês devem fazer o que ele diz. E todo mundo ouça: Barandão agora é o chefe.”
De punhos levantados, as crianças saúdam Pedro Bala, que parte para mudar o destino de outras crianças.
“Na noite misteriosa das macumbas os atabaques ressoam como clarins de guerra.”

...UMA PÁTRIA E UMA FAMÍLIA


Anos depois os jornais de classe noticiavam sobre um militante proletário, o camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela polícia de cinco estados como organizador de greves, como dirigente de partidos ilegais, como perigoso inimigo da ordem estabelecida.
“No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar, no ano que foi todo ele uma noite de terror, esses jornais (únicas bocas que ainda falavam) clamavam pela liberdade de Pedro Bala, líder da sua classe, que se encontrava preso numa colônia.

E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros lares, na hora pobre do jantar, rostos se iluminaram ao saber da notícia. E, apesar de que lá fora o terror, qualquer daqueles lares era um lar que se abriria para Pedro Bala, fugitivo da polícia. Porque a revolução é uma pátria e uma família.”

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