quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O MONSTRO (1994) - Sergio Sant'anna




I – AUTOR:



SÉRGIO SANT’ANNA, carioca, nascido em 1941, iniciou sua carreira de escritor em 1969, com os contos de “O Sobrevivente”, livro que o levou a participar do International Writing Program da Universidade de Iowa, nos EUA. Recebeu o prêmio Jabuti por duas vezes, com “O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro” (1982) e “Amazona” (1986). Suas publicações incluem ainda “Notas de Manfredo Rangel”, “Repórter” (1973), “Confissões de Ralfo” (1975), “Simulacros” (1977) e “A Tragédia Brasileira” (1987). Pela Companhia das Letras, editou “A Senhorita Simpson” (1989), “Breve História do Espírito” (1991), “O Monstro” (1994) e “Contos e Novelas Reunidos” (1997).


II – CARACTERÍSTICAS:



Os contos de “O monstro” possuem o subtítulo de "Três histórias de amor", ironia do autor ao apresentar os conflitos íntimos vividos pelo homem contemporâneo, retratando-os através da palavra as angústias humanas.
Sérgio Sant’anna, autor pós-modernista, eclético, utiliza-se da escrita para exprimir o indizível ao mesmo tempo em que explora o próprio fazer poético onde o desejo se transforma em narrativa.
As narrativas recorrem a um mundo feito de paixões violentas e de um erotismo que vem mais da mente que do corpo e que nunca está isento de um voyeurismo.
A temática da solidão, da fragmentação humana e do abandono remete as personagens ao trágico e ao inesperado apresentando narrativas em que o resultado de se conviver com a transgressão e uma pretensa normalidade, transporta o leitor em cúmplice de atos tresloucados, além de raciocínios imprevistos, onde o insólito e o banal, o instinto e uma acurada reflexão mental caminham lado a lado.
A violência explorada nos contos é apresentada a partir de contradições, antíteses e paradoxos e ora é encarada como um instrumento de poder, ora como via para a transcendência, onde o sexo é a figura central.
Assim, teorias da filosofia, psicanálise, criminologia, entre outras, são indispensáveis para a leitura e compreensão dessa obra.

III – ESPAÇO:

O espaço focado nas três narrativas que compõem o livro “O monstro”, de Sérgio Sant’Anna, situam-se respectivamente numa cidade do interior do Brasil, numa prisão do Rio de Janeiro, e num hotel de cinco estrelas em Chicago.
A diversidade entre os espaços acompanha a variedade de gênero explorado pelo autor indo da epístola (carta) à entrevista policial. A cidade apreciada à distância não ameaça nem estimula a ilusão de que poderíamos decifrar seus enigmas. Suas luzes, à distância, não ofuscam as luzes da razão que ordena a narrativa.

IV - LINGUAGEM:

A diversidade de gêneros, o jornalismo e a mídia, faz com que a obra transite entre a ficção e a realidade permeando uma linguagem que mescla objetividade para garantir verossimilhança e legitimidade.
O autor retoma o pastiche da linguagem da imprensa que já havia experimentado em obras dos anos 70 e 80 e não abre mão de um tom moralizante que em grande parte da ficção abandonou em favor do amoralismo e da valorização do jogo da linguagem por si mesmo.


V - PERSONAGENS:
As personagens, nos três contos de “O Monstro” são perturbadas, preocupadas em narrar suas experiências ao mesmo tempo em que buscam através da memória e da auto-análise reviver os mundos que criam ao narrá-las, na tentativa de compreenderem seu universo particular e suas intimidades. Suas personagens afastam-se da realidade e mergulham-se numa viagem no imaginário individual dentro de uma sociedade abstrata. Elas não são capazes de viagem, na acepção de saída de um mundo determinado, porque estão presos ao único mundo que lhes interessa, ou seja, o mundo das palavras, através das quais procuram criar um espaço em que possam se encontrar, como forma de compensação para a perda de sentido da dimensão do real.

VI – ANÁLISE DOS CONTOS:

1. “A carta”


Mulher de azul, lendo uma carta (1664), Johannes Vermeer

“Esta carta então apócrifa, egoísta, orgulhosa, que se quer uma essência das cartas, utópica e abstracta como uma melodia vermelha, entoada por uma mulher que talvez nem seja engenheira, talvez a louca em trajes fétidos no pátio do asilo e que se chama Jussara, mas assina Beatriz como quem se veste de princesa para um amante inventado; que inventa ainda uma cachoeira, uma casa, uma cidade e até seu prefeito; esta louca que talvez até nem seja mulher, mas um homem solitário em seu quarto acanhado e que constrói para si uma amante louca em nome de quem remete a si mesmo ou ao léu uma carta que tenha a duração escrita de uma noite.”

O conto “A carta” relata a experiência de Beatriz, uma engenheira de uma cidade do interior que se envolve sexualmente por uma noite com Carlos, um secretário do governo, casado que estava de visita profissional na cidade. A importância da carta não está nem na emissora e nem no destinatário da mesma, mas em sua reconstrução idealizada, na intenção de reviver utopicamente o momento fugaz e na tentativa de reconstruir a experiência vivida, remodelando-a na memória, como pode ser comprovada pela personagem do conto “A carta”:

“E o que realmente importaria, então, não seria o destinatário, nem mesmo a autora, mas a construção utópica, o gozo do corpo na razão, a carta em sua autonomia.”
A personagem ao escrever a carta, descobre que seu encontro fortuito e seus sentimentos pelo amante, eram inferiores ao prazer à sensação de narrar o ocorrido:
“(...) as coisas nunca são uma só coisa e, à medida que escrevemos sobre elas, os caminhos se bifurcam, às vezes queremos seguir todos eles e uma escrita vai se tornado interminável”.

A carta consiste no prolongamento da aventura passageira, tornando-a real e documental. Porém, contraditoriamente, essa a carta memorável pode ser considerada com algo efêmero, sempre passível de ser reescrita e alterada, mas sem desvincular-se da memória.

“Esta carta, esta grafia, que por vezes reluziu nos candelabros de um palácio íntimo (...), não poderá consumir-se para além da extensão de uma noite”.

Para Beatriz, seus sentimentos “são como as obras que necessita edificar.” Além de, concretizar o prazer que na ocasião do relacionamento físico, embora com toda a excitação, ela não conseguiu realizar.
Dessa maneira, a carta representa o encontro; o descobrimento; a atração sexual; o clímax; a despedida; a conscientização sobre seus sentimentos; a liberdade de expressão e a própria narrativa (sucessão de fatos e a narrativa da narrativa).
Beatriz reflete sobre sua necessidade de escrever e conclui que é um ato vital, forma de preencher as lacunas da sua vida. Para tanto, a engenheira recria uma situação utópica, idealizando uma nova aventura amorosa com seu amante, podendo dessa forma, ampliar as suas expectativas ao narrar sua experiência.

“Mas por que, mais uma vez, sendo assim tão primário o que busco, escrevo eu tanto? Talvez porque, para refazer esse percurso, reencontrar o lugar e tempo perdidos, seja preciso retraçar um rastro em palavras até o lugar em que se perderam, para que eu não precise mais dessas palavras e me cale, porque as disse.”

Beatriz inicia a sua carta demonstrando grande insegurança e apresentando o verdadeiro motivo de escrevê-la: prolongar o seu encontro para completar o vazio que ficou. Afinal, se não houvesse incompletude na relação sexual, não haveria a lacuna deixada e nem automaticamente, a carta. O texto vai adquirindo um ritmo forte onde a escrita e o sexo mesclam até atingir ao clímax.
“A questão do tratamento a lhe dar me fez manter suspensa a escrita desta carta, a caneta na mão, e confesso que cheguei a escrever, no início de uma página depois abandonada, ‘Carlos, meu amor’.”
“Porque é nesta escrita e construção – e esta sua razão maior – que as coisas parecem ter acontecido, tornam-se reais e vivas. Escrevo para repetir, viver”.

“Seja ou não violada esta carta, estará aqui esta mulher abrindo as pernas para o amante (...) esta pornografia como uma construção assinada também pelo corpo...”.

A engenheira envia a carta a Carlos, mesmo sem ter certeza que ele a receberá.
O conto termina deixando em aberto a verdadeira identidade da redatora da carta o que não faz diferença até porque a verdadeira é todas, trata-se de um narrador de identidade fragmentada, os eventos da estória contada passam a ser menos importante do que a capacidade de contá-la; do que o gesto de esforço e desprendimento para narrá-la. A escrita como tema, sob o disfarce da temática amorosa – disfarce que não deixa de guardar verdades, já que a questão da relação amorosa no texto metaforiza a relação de amor com a escrita – no fim do conto, se revela plenamente porque não quer perder-se como complemento para a narrativa da própria vida. O que temos, no fim, é um narrador que tem a necessidade visceral de reinventar a memória nomeando e renomeando as coisas de seu mundo e os seus desejos mais íntimos com a força que só lhe brotaria a partir da escrita.


“Logo já estarei antecipando-a na mala postal. (...) Esta carta, entoada por uma mulher que talvez nem seja engenheira, talvez a louca em trajes fétidos no pátio do asilo (...); a louca que talvez nem seja mulher, mas um homem solitário em seu quarto acanhado e que constrói para si uma amante louca em nome de quem remete a si mesmo ou ao léu uma carta que tenha a duração escrita de uma noite.”

2. “O Monstro”


Visage I – 2001, Ana Lima Netto

“È necessária muita cautela para se chegar a alguma verdade quando se trata de atos humanos.”
O tema policial e a estrutura da história são extraídos do jornalismo. O conto incentiva a aproximação entre literatura e jornal mimetizando as convenções da linguagem jornalística. Trata-se do que se chama, em jargão, de "pingue-pongue", pastiche, uma reportagem policial em forma de entrevista de perguntas e respostas, na qual a intervenção do jornalista, no caso específico a edição da revista fictícia Flagrante, resume-se à introdução e às questões direcionadas de forma sensacionalista, levantando informações, e deixando o maior espaço ao entrevistado, que assume diretamente a fala, em função do interesse do depoimento.
O jornalista, ao pontuar a narrativa, funciona como o observador neutro, que amplia o horizonte da narração no seu posicionamento que é, simultaneamente, de questionamento e corroboração do narrado. A entrevista gira em torno do dualismo entre o amor e o desejo sexual e o entrevistado, é o próprio autor do crime.
A construção em primeira pessoa acrescenta complexidade à narrativa, porque a apresenta do ponto de vista do sujeito que procura se conhecer.
Em “O monstro” os retratos são ambíguos. Sant’Anna não deixa nunca de provocar no leitor o desconforto de duvidar da completude da percepção e da linguagem.
Além disso, como o narrador é testemunha participante da ação, suas palavras ganham concretude e produzem empatia no leitor:

“Mas, como procurei esse tempo todo não ser complacente comigo, vou permitir-me agora expor sentimentos meus muito profundos, de um modo que nunca seria possibilitado numa investigação policial ou julgamento.”

A linguagem adotada por Antenor é, apesar de sua participação nos acontecimentos, predominantemente objetiva, fria, distante e impessoal como também a apresentação das demais personagens da trama.
Em “O monstro”, o professor universitário, Antenor Lott Marçal, 45 anos é preso por assassinato e estupro de Frederica Stucker, 20 anos, portadora de uma grave deficiência visual. Anomalias patológicas, sexualidade, voyerismo, paixão, violência, crime, amor, obsessões, novos modos de olhar o sexo e a morte são alguns temas que envolvem esse conto.
Tanto no caso da co-autora do crime Marieta como no da vítima Frederica, alguns aspectos característicos são enfatizados e até repetitivos, para reforçar a imagem e caráter de forma convincente.

ANTENOR: (…) Ali de pé, no centro do banheiro, de frente para mim, era como se ela [Frederica] ocupasse um espaço próprio e olhasse para dentro de si mesma, séria, compenetrada, sem qualquer afetação ou consciência da sua beleza, de que pudesse estar sendo objeto do amor e da cobiça de outros olhares.

FLAGRANTE: É sabido que os cegos, ou mesmo os quase cegos, possuem os sentidos muito aguçados. Não lhe ocorreu, ainda que não naquele momento, que Frederica possa ter pressentido a presença e o olhar do senhor, sem reagir a isso?

ANTENOR: Não… É claro que não… Não pode ser. Qualquer dúvida nesse sentido lançaria uma nova luz sobre os acontecimentos, não menos terrível, ou ainda mais terrível. (SANT’ANNA, 1994, p.53)

ESTRUTURA:

O conto é dividido em duas partes como recurso técnico e traz um cabeçalho no inicio de cada uma, indicando detalhes específicos de uma entrevista: a data da publicação (2 e 9 de junho de 1993), nomes próprios completos, as datas exatas e locais precisos, a idade do entrevistado, inclusive reproduzindo cacoetes do jornalismo num tom ligeiramente caricato.

“Em sessão do 2º Tribunal do Júri, em 4 de março passado, no Rio de Janeiro, o professor universitário Antenor Lott Marçal, de 45 anos, após ter sua culpa reconhecida unanimemente pelos jurados, foi condenado pelo juiz Irailton Catanhede à pena de trinta anos de reclusão, pelo estupro e co-autoria do assassinato de Frederica Stucker, de vinte anos, no dia 18 de junho de 1992.” (SANT’ANNA, 1994, p.39)

As duas introduções apresentam indícios de preocupação em legitimar o relato como verdadeiro. Porém, por mais que se propõe relatar a verdade, o enredo é conflituoso e transita entre verdade e imaginação, entre o jornalismo e a vida humana, para tanto, “é necessária muita cautela para se chegar a alguma verdade quando se trata de atos humanos”, questiona o protagonista, além do papel da mídia em sua conformação.

“O pouco de edição que foi feito na matéria obedeceu a critérios de melhor ordenamento da mesma e obteve a concordância do entrevistado, que introduziu algumas alterações no texto final, revelando sobretudo preocupações de ordem sintática e de clareza, para depois colocar sua assinatura em todas as folhas originais.”

“(…) a exemplo do que aconteceu com a primeira parte da entrevista, preferimos não antecipar com subtítulos ou destaques na matéria, para que suas etapas com as correspondentes revelações possam ser acompanhadas pelos leitores em sua ordem e mecanismos próprios.”(SANT’ANNA, 1994, p.40 e 69)

Em seu depoimento, o professor Antenor, narrar como ele e sua amante, Marieta de Castro, 34 anos, conheceram Frederica e também o fascínio que essa causou no casal. O entrevistado caracteriza Marieta como uma mulher de personalidade possessiva e violenta e, que sempre almejou a transcendência física na busca do prazer sexual.

“Marieta queria verdadeiramente, as pessoas que a interessavam e a atraíam. A diferença, aquilo que Marieta não possuía ou atribuía a outrem, a exasperava.
Ela queria desmistificar as pessoas, torná-las seres comuns (...).”

Antenor passivamente não se rebelou contra as fantasias eróticas de Marieta, na ocasião do encontro entre os três, no apartamento da amante. Mas, despertou ciúmes em Marieta quando fixou seu olhar de admiração diretamente no corpo de Frederica.

“Marieta não suportava a frustração. Havia uma espécie de pureza infantil em sua amoralidade. O fato é que se você tiver a psicologia de uma criança em um adulto dotado de força e inteligência, eis o monstro.”
Marieta coloca calmantes na bebida de Frederica, e enquanto ela está desacordada, o casal desfruta de prazeres sexuais seviciam a garota. A co-autora do crime sentia necessidade de dominar sua presa e inferiorizá-la para poder se sobressair na situação.
Frederica desperta e não aceita participar das fantasias do casal. Então, eles a drogam com éter e cocaína e depois a asfixiam com uma almofada.
Antenor tinha necessidade de calar a jovem, pois só dessa maneira, ele poderia possuí-la e esse ato tornará fundamental para a interioridade do conflito do professor.
A garota morre e Antenor induzido por sua amante, consuma sua relação sexual para satisfazer a fantasia erótica de Marieta que atinge seu clímax com uma “voracidade sem limites”.
O casal oculta o corpo da jovem, num local distante. Em seguida, Marieta se suicida ao saber que Antenor se entregaria à polícia.
A decisão de Antenor de ser entregar à polícia reflete um forte traço de sua personalidade: a possessão.
O professor não suporta que outros ocupem o seu lugar. Ele tem necessidade de ser o sujeito de seus atos e quando vários suspeitos assumem o crime nos interrogatórios e jornais, Antenor sente necessidade de assumir a sua própria história, não se importando com as consequências. Para Antenor, a autoria do crime era essencial para sua verdade e experiência de vida.
O professor explica como precisou elaborar os acontecimentos experimentados no assassinato e assimilá-los, para continuar a viver.

“Durante os dias eu ficava sozinho e a história de Frederica se transformava ao sabor do que se publicava nos jornais, observa.” (SANT’ANNA, 1994, p.72)

“É curioso o poder da palavra impressa. Eu mesmo tentei colocar em dúvida, intimamente, algumas coisas. Por exemplo, se Frederica não teria buscado conosco uma aventura amorosa.
E se a sua morte não teria ocorrido por uma fatalidade.
(…) Está certo, não lhe posso dar essa certeza. E, ainda quando se trata de fatos concretos, como os que levaram à morte de Frederica, eu próprio duvido, algumas vezes, se a reprodução deles que tenho em mente e procuro transmitir é a mais correta possível. No decorrer desta entrevista, pareceu-me, várias vezes, que enxergava os acontecimentos sob novos ângulos e que eu mesmo me transformava, falando deles. As coisas acontecem velozmente, não podemos fixá-las nos momentos em que as vivemos.” (SANT’ANNA, 1994, p.71, 77 e 78)

Sobre os seus “concorrentes”, Antenor afirma que está defendendo a verdade e que:

“(...) sempre houve nele, em sua formação, esse desejo de buscar a verdade.”

No entanto, trata-se de individualismo e egocentrismo da personagem, além do egoísmo de querer deter para si o corpo e a vida de Frederica.

“Algumas dessas pessoas até desprezíveis, como o viciado maluco que confessou ter estado com Frederica naquela noite, sem nunca tê-la visto na vida. Sua versão foi logo desmontada, mas fazia parte de um festival de fantasias, de manipulações da vida e do corpo de Frederica. Eu não podia suportar também aquele noivinho, como ele se apresentou, todo certinho, posando de protetor da noivinha cega, muito amado por ela, o que eu sabia não ser verdadeiro. Enquanto isso era como se eu não existisse, ali fechado no apartamento.”

Antenor entrega-se para sentir liberdade para amar Frederica, amenizar a sua dor e a violência do seu ato.
Sua entrevista à revista Flagrante trata-se de um depoimento de defesa baseado numa argumentação racional, dissertando sobre o bem e mal e colocando-se em superioridade.
Antenor detém o dom da oratória: explica, questiona, instiga, joga com opostos, articula e responde.
A sensação de vazio diante do acontecimento é substituída pelo desejo e paixão por Frederica revividos durante o interrogatório que desperta no professor a crença na transcendência, onde ele possa encontrá-la e amá-la novamente, como também, protegê-la de Marieta.
Assim, o ato de violência e assassinato é tido como um caminho de alcançar a sua busca espiritual e para tanto, somente o aniquilamento do outro poderia ocorrer.
Dessa forma, o desejo do casal em matar Frederica corresponde à necessidade de posse do outro e em busca de uma “causa maior” e isso é traduzido através da entrevista de Antenor.
O professor Antenor denuncia o sensacionalismo provocado pelo jornalismo e pela exposição da mídia sobre a realidade pública e privada. Acrescenta, ainda que, na segunda parte da entrevista foi procurado por representantes de duas editoras com propostas de escrever livros sobre sua vida.

“Um deles veio com uma conversa mole de que eu poderia mostrar, no livro, o meu lado humano (Antenor ri sarcasticamente). O outro, pelo menos, não procurou escamotear os objetivos comerciais da proposta e disse-me, apenas, que minha história com Marieta, Frederica, seria de grande interesse para os leitores. É verdade e não é outra a razão pela qual a sua revista está me ouvindo. Eis uma questão importante: as pessoas querem compartilhar de tudo o que aconteceu nessa história. Tirarão dela um prazer que não gostariam de admitir.” (SANT’ANNA, 1994, p.75)



3. “AS CARTAS NÃO MENTEM JAMAIS”


“Fruteira e Cartas de Baralho, 1913. Georges Braque.

“Não sei mais quem sou, Dorothy, não sei o que é verdade ou mentira em minha vida. Às vezes só as histórias me parecem reais.”

Antônio Flores é o narrador ambíguo do conto “As cartas não mentem jamais”.
Famoso compositor de música clássica, brasileiro, nascido no Rio de Janeiro, vive viajando pelo mundo, uma forma de escapismo, na tentativa de não aceitar à ideia, que sua vida não é real.
Afastando-se dos problemas do cotidiano e escondendo-se dos perigos da cidade grande, o narrador hospeda-se no décimo quinto andar de um hotel luxuoso em Chicago de onde observa o mundo e revê a sua vida.
O compositor acabou de ter uma relação sexual com uma jovem francesa de dezesseis anos, Michelle. Em seguida, conversa em inglês com a jovem, contando-lhe sobre a trajetória de vida.
Na tentativa de reconstruir a história de sua família, Flores narra sobre sua infância; sua opção pela música; suas composições, Sinfonia da bola nº 1, Sonata Atlântica, que foram interpretadas pelo famoso maestro Karajan (mistura de elementos reais e ficcionais); o seu primeiro amor por Estela, a sua traição com outro garoto da rua em que moravam e seu desejo em relação ao fato: “queria que o outro rapaz possuísse Estela ali às minhas vistas, para que o meu aniquilamento fosse completo e definitivo”; sobre a iniciação sexual de ambos e sobre Madame Zenaide, a cartomante de um sorriso com dentes muito brancos, que joga suas cartas na própria cama da mulher, além de iniciar o menino nas questões de sexo, também será responsável por ler o destino dele nas cartas e “alterá-lo profundamente”.
Essa leitura de cartas misturada à iniciação sexual, esse dualismo entre anjos e demônios, abrindo caminho para a reversibilidade do destino da personagem, parece abrir caminho também para o destino da narrativa, que a partir desse momento opta por seguir a “verdade” das cartas, que sugere que “não se pode fugir da morte e é melhor entrar num acordo com ela. Às vezes você tem que decidir entre matar ou morrer”.

“Quando madame Zenaide me estendera os braços, seus olhos estavam revirados, numa expressão ao mesmo tempo meiga e selvagem, como se um anjo e um demônio possuíssem simultaneamente o seu corpo, para, por sua vez, serem possuídos por mim e também me possuírem.”

Dessa forma, Madame Zenaide muda o destino de Antônio, iniciando-o sexualmente.
O avô de Antônio foi um grande compositor de marchinhas de carnaval que morreu de overdose de lança-perfume, em um sótão de um casarão onde morava, por sua mulher não ter permitido que ele fosse brincar o carnaval. Antônio procura Zenaide para curar sua depressão, através da leitura de seu destino nas cartas e a cartomante, metaforicamente, liberta Antônio de ter o mesmo fim autodestrutivo que teve o seu avô.
Assim, o narrador apega-se nas profecias das cartas para dar continuidade à sua própria vida e automaticamente, de um ouvinte que pode estar à distância para que prolongue à sua sensação de viver um eterno presente.
O narrador perde-se em sua complexidade e transita entre o plano real e o imaginário do passado, mescla verdades e mentiras, tornando-se contraditório e no momento em que fala dos outros, age, muitas vezes, como se tratasse de si mesmo em terceira pessoa. Ele cria cenas cheias de clichês, fantasias sexuais, sonhos e imaginações temperando-as com maestria de criatividade e de encenações sofisticadas, apresentando traços definidos de desvios de identidade.
Na tentativa de interligar passado, presente e futuro, Flores busca reconstruir “uma temporalidade despedaçada pela grande mobilidade no espaço que a tecnologia moderna tornou possível, pelos ritmos acelerados que regem o cotidiano, pela obsolescência rápida dos sistemas técnicos, pelo apagamento das fontes e referências.”
Flores deixa Michelle dormindo no quarto de hotel, porque “o ato terminou e ele deve abandonar a cena para não estragá-la, para que as notas continuem a repercutir no tempo.”

Antônio é um cidadão mundialmente conhecido, ironicamente “não se conhece”, vive em espaço aberto, percorre o mundo, ao mesmo tempo sente-se enclausurado e sua válvula de escape é a tecnologia moderna. Assim temos: um pianista brasileiro, que está com uma francesa em Chicago, falando inglês e conhecerá uma psicanalista, Dorothy, que mora em Las Vegas, e irá falar com ela, pelo telefone, de Tóquio, onde as cartas são lidas novamente e todas as vezes que se trocam a posição das cartas, os acontecimentos futuros mudam.
O narrador utiliza-se do recurso metalinguístico objetivando recuperar a origem de sua própria arte, pois perderam suas raízes no momento em que foi absorvida por culturas diversificadas.
Antônio está no aeroporto, apenas como um passageiro anônimo, de óculos escuros, na esteira rolante, no meio de tantos outros passageiros. O seu movimento, estacionado na esteira, dá-lhe uma noção exata de que não existe nenhum lugar para ir, o mundo é muito pequeno, o único movimento significativo é o do próprio planeta, a bola, dentro ou fora dele, Antônio. E tudo o que lhe aconteceu e acontece de importante se deu em sua própria casa; a casa que ele carrega consigo para Tóquio.
Durante a viagem ao Japão, Antônio escolhe hospedar-se num motel-cápsula, radicalizando o seu desinteresse por um mundo que lhe parece sempre igual, onde tudo é superficial e efêmero. Porém, sua atitude é inválida, pois ele tem a impressão de que se move sem se mover.

“Agora Antônio está no aeroporto, apenas um passageiro anônimo, de óculos escuros, na esteira rolante, no meio de tantos outros passageiros. O seu movimento, estacionado na esteira, dá-lhe uma noção exata de que não existe nenhum lugar para ir, o mundo é muito pequeno, o único movimento significativo é o do próprio planeta, a bola, dentro ou fora dele, Antônio. E tudo o que lhe aconteceu e acontece de importante se deu em sua própria casa; a casa que ele carrega consigo para Tóquio. Precisa ter a ilusão de um tempo ordenado, no qual as coisas se sucedessem com uma relação de causa e efeito, quer recuperar uma concepção do tempo contra a qual tudo conspira, inclusive a viagem, dos Estados Unidos ao Japão, que, prolongando absurdamente o dia, contribui ainda mais para estilhaçar, gerando uma sensação de estar estagnado (...).”

Não se trata, entretanto, de opor, como faziam os personagens da fase heróica do modernismo, a este mundo exterior fragmentado, um mundo interior onde se poderia encontrar um sentido profundo para o vivido. Trata-se de se refugiar na lógica narrativa, que se autonomiza e cria um espaço com leis específicas, no interior do qual o próprio criador é concebido.
Antônio Flores ao comentar sobre sua viagem ao Japão, disse:

— Já estive lá antes. Os japoneses me confundem. São ouvintes atentíssimos, mas às vezes desconfio que não estão entendendo coisa alguma da minha música. Ou que estão embarcando numa outra viagem, só deles.

E, quando lhe perguntam se não achava esta situação interessante, acrescenta:

— Acho, mas gostaria de conhecer melhor a viagem em que estão embarcando. A expressão deles é indecifrável. Às vezes tenho a sensação de estar completamente por fora naquele país, de ser um primitivo diante de toda aquela tecnologia deles, aqueles sintetizadores de última geração. Na maioria dos casos sai um pastiche idiota, do Ocidente ou deles mesmos. Mas isso pode mudar e talvez os japoneses encontrem um novo caminho para a música. De qualquer modo gosto muito de Tóquio à noite (...).”

As personagens com quem dialoga ora em inglês ora em francês, também estão em trânsito, são indivíduos cultos, da mesma classe social, cultural e econômica que vai desde o hábito de beber champanhe, comer hamburger com batatas fritas e serem fãs dos filmes de Godard, que estão dispersos no mundo globalizado.
Dessa forma, Godard, torna-se personagem da narrativa, o cineasta que frequenta o divã da Dra. Dorothy para curar-se de uma grande obsessão: a impossibilidade de filmar todas as imagens que passavam por sua cabeça. E, a solução encontrada foi criar um filme onde contivesse todos os seus outros filmes, o God-art.
“God-art”, eu disse para ele. “God-arte”, ele concordou imediatamente, pois tal associação já lhe ocorrera um monte de vezes.
Talvez, Madame Zenaide, se fosse analisada como Godard, se sentisse também frustrada, por não poder fazer uma leitura tão radical das cartas a ponto de conter todas as previsões possíveis. Então, como diz o conto, sob pena do “grande perigo”, que seria “embaralhar todas as cartas”, vamos combinar que as cartas não mentem... mas das verdades que dizem, não teremos certeza jamais.

Ao final, fica subentendido que Antônio terá com Dorothy o mesmo tipo de relação que tivera com Michelle. No entanto, pode-se questionar se a história contada por ele, e gravada por Michelle, a dama de cabelos ruivos vislumbrada nas cartas, não poderia ter sido inventada, como uma forma de sedução. Afinal, o seu erotismo só se realiza concretamente através da linguagem e para isso, a necessidade do ouvinte ou leitor.

Um comentário:

Anônimo disse...

ADOREI O RESUMO MUITO BOM