domingo, 2 de janeiro de 2011

MARINHA, VINICIUS DE MORAES


Na praia de coisas brancas
Abrem-se às ondas cativas
Conchas brancas, coxas brancas
Águas-vivas.

Aos mergulhares do bando
Afloram perspectivas
Redondas, se aglutinando
Volitivas.

E as ondas de pontas roxas
Vão e vêm, verdes e esquivas
Vagabundas como frouxas
Entre vivas!


Em “Marinha”, Vinicius de Moraes, atinge o caráter sublime que perpassa toda a sua produção.

O poema, logo à primeira leitura, chama a atenção pelas imagens vagas, fluídas e metafóricas que provocam o leitor.
O título do poema evoca o olhar sobre o mar que se desenvolve em todo o texto como seu alicerce. Esse olhar é elevado á captação de um instante fugaz e sua impressão sensorial e cromática de uma paisagem marítima.
A contemplação do mundo marinho não é uma temática recente à poesia brasileira. Ao contrário, a simbologia da água, possui grande força expressiva, primeiramente, por existir antes da terra e, pelo resgate do símbolo da Criação.
À cosmogonia aquática defende a crença que ela representa a morte iniciática simbolizada pelo batismo, mas nunca a sua extinção definitiva e sim, uma renovação.
Este simbolismo corresponde ao batismo e aos banhos rituais primaveris que trazem saúde e fertilidade, adquirindo a função de “lavar os pecados”, a purificação. Assim, a água integra todas as revelações particulares das mais variadas hierofanias, até mesmo por sua disforme que a destaca de todos os objetos.
Desde o século XII, a lírica trovadoresca explorava o mar em suas cantigas de amigo, também denominadas marinhas ou barcarola, de criação galego-portuguesa. O galego e o português foram criados à beira-mar, e talvez por isso a vida marítima participasse do seu temário poético.
As sugestões do mar encantam e compartilham a solidão da donzela apaixonada que desabafa junto ás ondas, pede-lhe notícias do amado, ou ainda espera sua volta através do mar.
Outra característica relevante no poema é a sonoridade de seus versos repletos de sinestesias (fusão de dois ou mais sentidos); de aliterações (sequência constante de fonemas para sugerir um som); de assonâncias (sequência constante de sons vocálicos); reiteração (repetição de palavras ou versos inteiros) e versos curtos resultando numa aproximação entre a poesia e a música (musicalidade).
Na primeira estrofe, as rimas alternadas (brancas, cativas, águas-vivas) que ecoam em todos os versos, aliadas à metrificação (3 versos de 7 e 1 de 3 sílabas), somadas à irregularidade da acentuação, que varia desde a 1ª e 7ª até 3ª e 7ª sílabas, o que caracteriza um movimento rítmico do poema, e à repetição do som /n/ (brancas, ondas, conchas) remetem a leitura a um movimento construído pelo poema: a sedução das ondas do mar.
Seduzido, o leitor se entrega à musicalidade das ondas que se desenvolve no restante do poema e que parte da visualidade impactante e da brancura (limpidez, pureza) insistente da primeira estrofe. Diante das conchas e coxas que se abrem, a voz poética percebe na claridade da praia a transparência no mar, em águas-vivas.
O eu lírico que olha a praia num instante imediato transforma o prosaico em poesia e adentra o mar sob uma perspectiva volumosa, como mostra a segunda estrofe: “Aos mergulhares do bando/Afloram perspectivas”. Ao mergulhar, o verso evidencia um movimento de descida do poema, ao fundo do mar, deixando ao olhar apenas o oculto e obscuro sob a superfície das águas, criando uma oposição à claridade exposta na praia e ainda marcando na memória uma última visão. Por outro lado, o mergulho abre também a possibilidade e expectativa do surgimento, do retorno ao olhar. Sob a mesma luz, o poema esconde no mergulho e faz aparecer no retorno formas no mar (perspectivas, redondas). Os versos mantêm ainda o tom aberto das conchas e coxas da primeira estrofe, contudo trazem agora, além da musicalidade e imagens das ondas, uma sensualidade implícita no jogo esconde/aparece que o poema desenvolve. A expectativa daquilo que pode surgir une-se à contemplação última da cena e cria, junto com a sonoridade da paisagem, um universo de sensualidade, evidenciado na segunda estrofe e, sobretudo, no termo “Afloram” do segundo verso.
Aflorar quer dizer emergir, subir à superfície. O que dá a ideia de surgimento, aparição. Escusado dizer que o poema trata dessa questão (“Abrem-se”!) desde o impacto visual da primeira estrofe. Surgir na superfície das águas retoma, em um momento único ao poeta que se abre em perspectivas, a praia e a claridade do primeiro verso. O mergulho no oculto dá forças ao afloramento que se mostra no olhar ávido de formas (“redondas, se aglutinando”), repleto de expectativas e vontades (“Volitivas”).
Importante notar que o termo “afloram” contém em sua essência a palavra flor e que constitui o centro do poema, tanto formal, já que o termo ocupa o sexto verso de um poema de três quadras, quanto tematicamente. A metáfora da flor, tal como a do mar, é largamente trabalhada na poesia brasileira e com muita intensidade em Vinicius de Moraes. Poeta tido como lírico, Vinicius usou e abusou da metáfora flor em seus sonetos e poemas de amor numa analogia à delicadeza e efemeridade que representa a figura da flor (da mulher, do amor, do órgão sexual feminino) na literatura brasileira. Em “Marinha”, o poeta resgata a imagem da flor como a delicadeza de um olhar iluminado pela perspectiva do efêmero e ainda traz para o texto um novo elemento: a surpresa no verso. Essa figura simboliza aquilo que desponta em uma haste, o que surge do caule antes escondido na planta. Ela simboliza aquilo que toma forma dentro de uma outra forma: a flor que surge na superfície da água, o que aflora. A metáfora da flor, aliada à sedução sonora e imagética e à localização central, contribui para a equação (esconde/aparece) representada. A esses elementos, atribui-se outro, que deriva deles e, ao mesmo tempo, une todos eles: o erotismo.
Ora, é sabido que o erotismo é explorado clara e conscientemente por Vinicius e por toda sua crítica. Falar do tema é iluminar o óbvio. No poema “Marinha”, é notória a relação erótica que estabelece o leitor em um primeiro momento. Mas debruçando-se sobre o poema, é possível retirar daí algo que retoma o lirismo clássico e que, talvez, se diferencie da mera e gratuita indução erótica que beira a sexualidade em uma primeira e rasa leitura.
Octavio Paz, tratando do tema, faz uma diferenciação e gradação entre o erotismo e a sexualidade, trabalhando a relação que retira daí a poesia:

“A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. Ambos são feitos de uma oposição complementar. A linguagem – som que emite sentido, traço material que denota idéias corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação. O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético. É a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora. A imagem poética é abraço de realidades opostas e a rima é cópula de sons; a poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela própria, em seu modo de operação, já é erotismo. E da mesma forma o erotismo é uma metáfora da sexualidade animal. O que diz essa metáfora? Como todas as metáforas, designa algo que está além da realidade que lhe dá origem, algo novo e distinto dos termos que a compõem.”
Tal relação acontece em “Marinha”. A representação é clara: o mar contemplado sob uma perspectiva de rimas e ritmo transforma a visão em metáfora. Algo fica implícito no jogo esconde/aparece do poema, já que tudo se encontra transfigurado. E o elemento implícito é que transforma a sexualidade em cerimônia e erotiza a linguagem, trazendo uma sensualidade para o texto. O eu lírico que olha o mar a partir da praia não pontua marcas sexuais do mar, mas a poesia que o mar proporciona. A eroticidade presente se diferencia da sexualidade animal apontada por muitos na lírica de Vinicius de Moraes. O leitor pode questionar ainda certas imagens passíveis de conotação sexual como as “conchas” que se abrem, sugerindo uma espécie de imagem sexual na praia, do feminino. Ou ainda comentar no termo “redondas” a sugestão que toma e que pode ecoar em vagabundas na última estrofe. Mas neste poema a linguagem adquire uma transfiguração tamanha que a associação perde a força diante da sensualidade sonora das metáforas. O texto deixa clara a intenção metafórica da veia lírica de Vinicius. Tanto que, no poema, o termo que carrega maior força denotativa, e se possível dizer, carnal, identifica-se na palavra coxa, e não esclarece muita coisa. A capacidade poética do texto identifica-se no poder de sedução da palavra voltando-se para si e adquirindo uma totalidade nela mesma.
A relação da poesia com a linguagem é semelhante à do erotismo com a sexualidade. Também no poema – cristalização verbal – a linguagem se desvia de seu fim natural: a comunicação. A disposição linear é uma característica básica da linguagem; as palavras se enlaçam umas às outras de forma que a fala pode ser comparada a um veio de água correndo. No poema a linearidade se torce, atropela seus próprios passos, serpenteia: a linha reta deixa de ser o arquétipo em favor do círculo e da espiral.
A reflexão de Paz pode colaborar para a análise do poema. Em “Marinha”, a linguagem adquire uma função outra: não é mera apresentação de uma paisagem marinha, nem uma consideração sobre elementos expostos na praia. É o jogo entre o eu que contempla o mar e próprio mar que contempla a praia. As perspectivas múltiplas das metáforas na linguagem pertencem ao jogo erótico esconde/aparece do poema. A relação da poesia, tal como diz Paz, não se dá linearmente, mas sim nas voltas que os versos criam entre o mar e a praia, a claridade e a escuridão, a superfície e o fundo: o que esconde e o que aparece.
A última quadra continua a intensificar essa relação. Se antes a perspectiva se manteve no mergulho do mar, agora ela eleva o olhar para a superfície das águas, para o pico das ondas (“E as ondas de pontas roxas”).
A claridade da primeira estrofe ganha cor e movimento nas ondas verdes e esquivas do mar. E o leitor se sente ainda mais seduzido pela lascividade das ondas que chega a sentir, como um sopro erótico, a sensualidade do vento que movimenta o mar, sugerido e sustentado pela repetição do som /v/. O eu lírico que observava o mar especulando movimentos, entre a praia e o mar, entre a superfície e o fundo se deixa levar pelas ondas, que afloram formas e perspectivas sob um olhar desinteressado, mas perplexo da interjeição e poesia que o mar proporciona.
O poeta Vinicius de Moraes diante da força de libertação cavada pelo modernismo brasileiro somada à proposta e projeto concretistas, caminhou por rios secundários e só, a partir do fim do século XX, vem sendo retomada pela crítica. O tom elevado de seus poemas e o lirismo de seus sonetos cede espaço para uma poesia marcada por uma estética de ruptura ou engajamento do século passado, afirmada pelas vanguardas.
Em “Marinha” é possível reconhecer estas marcas líricas que caminham em direção a uma poética pura.





Um comentário: